Cores Primárias – Folhetim por Lucian Brum


Capitulo 1 : O Jornal

Era início de primavera, o sol brilhava com intensidade e a sensação era de que o inverno tinha terminado na noite passada. Na quadra onde a rua XV de novembro passa a ser 7 de julho, fica a redação do jornal O Palpite.

Nas primeiras horas da manhã, apenas o pauteiro trabalhava elaborando notícias que seriam apuradas durante o dia, as pessoas aos poucos começavam a transitar pelo centro, o comércio ainda estava com as cortinas baixas. Como de praxe, o primeiro repórter a chegar à redação é Ruy Fernandes: barba de uns três dias, cabelos desgrenhados, olheiras perpétuas de vinte anos de reportagem policial. Já viu tantos tipos de atrocidades, que diz conhecer com profundidade a alma humana. O telefone tocou com persistência, o pauteiro atendeu e foi anotando o recado: “sim, sim, certo, vou passar”. Gritou para o jornalista:

— Ruy, da delegacia, um corpo encontrado no porto.

Fez sua pergunta profana:

— Cadáver de homem ou mulher?

O pauteiro não continha informações sobre a vítima, o soldado tinha sido breve, informou apenas que a ocorrência foi em frente à praça da alfândega e iriam rebocar logo. O jornalista, bebendo os primeiros goles do café disse pra si mesmo: “Bah, logo agora”.

Planejava escrever para sua namorada, ou ex-namorada — Coralina Terra, com quem vinha morando há alguns meses. Haviam brigado há três dias e estava planejando um jantar no italiano para reatar. Gritou de volta para o pauteiro:

— Tem Jeep?

— No estacionamento.

Dirigindo em direção o porto, pensava em como convenceria Cora: “whatssapp será, não, tenho que ligar, falar com ela, mas se ela não atender?”. Quando passava pelo Bar do Zé, foi reparando no agrupamento na esquina da praça.

Uma quantidade de pessoas mantinha-se ao redor da vítima coberta por um tecido preto, Ruy deduziu: “Vou ganhar a capa amanhã”. Aproximando-se, pedia espaço aos presentes: “Por favor, impressa, com licença”. Uma senhora em prato era confortada por um homem que a segurava para não agarrar o corpo. Havia muitos jovens com aparência de universitários, alguns trabalhadores portuários e curiosos comentando o caso ao pé do ouvido.

O delegado, Dr. Guedes, velho conhecido do Ruy, falava no celular aos berros. O jornalista precisava de uma fonte mais íntima, abordou uma moça que segurava uma grande pasta para desenho:

— Bom dia, você o conhecia?

— Sim, namorada — Respondeu.

“Sorte!”, pensou Ruy: “A sorte é o milhar do jornalista”. Afirmava que para fazer uma boa matéria é necessária uma dose de sorte na apuração. Convidou a moça para se afastarem um pouco: “Qual é o nome dele, o que ele fazia?”. Com os olhos lacrimejantes contou:

— Era pintor, artista — fungou um pouco, limpou as lágrimas e prosseguiu — Antônio, Antônio Castro. Ia começar o mestrado no próximo semestre, o conheci na universidade o ano passado, pintava bem, tinha uma produção autoral, um futuro, eu o amava… Agora ele se foi, um tiro, um só, nunca mais vou vê-lo.

Decerto, Antônio tinha surpreendido em sua primeira exposição individual com seus trabalhos de conclusão da graduação. Em que pintou doze retratos de colegas que haviam desistido do curso. O título da mostra questionava: o que faz um artista abandonar a arte?

Além das pinturas, em sua teoria, contava a sorte dos retratados, as dificuldades e as facilidades evidentes, procurando encontrar nas entrevistas a natureza do desencanto. A repercussão foi notável, os quadros saíram do centro de artes e foram expostos no museu Leopoldo Gotuzzo. Venderam. Com valores consideráveis. Os seis nus e os seis bustos medindo pra lá de dois metros, com tinta óleo aplicada impasto, sem linhas, em ambientação natural, formaram uma promessa. Após apurar a história, antes de voltar à redação, Ruy perguntou o seu nome: “Sonia”.

“Artista é encontrado baleado no bairro porto”, dizia a manchete. A nota no site do jornal informava que o artista Antônio Castro (25), foi encontrado pela manhã com um ferimento fatal provocado por arma de foto. Segundo informações da Brigada Militar, fazia dias que o artista não aparecia em casa, porém, a mãe não desconfiou. O jovem trabalhava fora em um atelier coletivo e era normal ficarem dias sem comunicação. A Polícia abriria um inquérito para investigar o responsável pelo homicídio.

No começo da tarde a redação de O Palpite ganhava movimento, após publicar a notícia na web, Ruy estava saindo para almoçar quando vieram lhe avisar: “Estão te procurando na portaria”.

— Mulher ou homem? — interrogou

Era mulher e, logo que a viu, Ruy relembrou a comoção e as lágrimas. Vestindo preto das sandálias aos cabelos, óculos escuros, o luto contrastava com a pele alva, que a deixava com uma intensa beleza fúnebre. Antes mesmo de cumprimentarem-se, ela foi sumária:

— Eu sei quem matou o Antônio.

Continua em Folhetim Cores Primárias – Capítulo 2: Retrato

Texto e foto: Lucian Brum[email protected]

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Folhetim – Apresentação:
O folhetim nasceu na França nos idos da primeira metade do séc. XIX, como uma estratégia de comunicação para conseguir fidelização dos leitores com o jornal diário, e consolidar a venda por assinatura. Todo dia o jornal publicava um capítulo da história, que girava em torno de temas cotidianos, e chamava atenção de leitores nobres, burgueses e assalariados. Ocorreu certa democratização da literatura, e se criou uma vitrine para escritores divulgarem seus nomes para um público mais abrangente que o das livrarias. Grandes obras foram publicadas no formato popular: Honoré de Balzac escreveu Ilusões Perdidas no jornal La Presse de Paris; Machado de Assis publicou Memórias Póstumas de Brás Cubas em edições da Revista Brasileira. Até os dias de hoje o estilo é o mais consumido nos meios de comunicação, no entanto, com o passar dos tempos, foi convergindo em radionovela, telenovela e atualmente chamamos de séries.

Acompanhe o folhetim Cores Primárias aqui no e-cult.
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