Capítulo 3: A partida (Confira aqui o Capitulo 1: O Jornal)
A fachada decorada com placas de metal enferrujado davam ares retrô ao galpão. O telhado, um arco em cento e oitenta graus.
O portão, uns três metros de altura por cinco de comprimento, contendo no canto direito uma portinha que passava um de cada vez. Ruy Fernandes inseriu a chave na fechadura simples da porta, deu duas voltas, baixou a maçaneta e empurrou. O atelier era de um ambiente escuro, apesar de entrar alguns raios de sol por telhas translúcidas. Soava na respiração um cheiro forte de tinta óleo. Encostados na parede do lado direito, um rolo te tecido encaixado num suporte de metal, hastes de madeira e algumas telas em processo de construção.
No lado oposto, sobre uma mesa, potes com pincéis, incontáveis bisnagas espremidas em rolo, paletas com misturas de cores ainda frescas. Ruy ligou a lanterna do smartphone e foi investigar. Estava penetrando na intimidade de um pintor que tinha sido sepultado na tarde passada. Ninguém havia estado
ali após o incidente: família, polícia; pareciam levar o caso com certo receio. Seguiu Iluminando quadros esboçados com carvão, alguns com primeiras camadas de tinta e outros praticamente prontos, “já em processo de secagem” – deduziu.
Fez algumas fotos dos trabalhos e se pôs em direção à saída. Um pouco antes de puxar a porta, reparou num cartão de visitas caído no chão. Agachado, virou o papel e leu: Augusto Villela – Produtor Cultural – Telefone: 053 9…
Depois da terceira tentativa desistiu da ligação. Por instantes interrogou-se: “Ia ser tão fácil assim? Ligar para o cara, marcar um encontro, colocá-lo na parede? Fazê-lo falar, arrancar uma confissão?”. Ruy teve uma epifania da situação e compreendeu que deveria tomar mais cuidado. Três chamadas não
atendidas o amarram na teia do caso. Lembrou-se de um velho repórter que lhe repetia: “Em um assassinato não há inocentes, todos são culpados”. Precisava saber em qual terreno estava pisando, e foi procurar uma fonte confiável.
O engarrafamento provocava uma sinfonia de buzinas e o sol ia se pondo no horizonte da Floriano. Pipocavam pessoas transitando na calçada e entre os carros em fila. Ruy entrou no prédio na esquina com o Calçadão e subiu a escada até a sala no segundo andar. Deu três toques fortes na porta de madeira. Reparou nos dois lados do corredor. Esperou um pouco e bateu novamente. A dobradiça enferrujada rangeu e pode ver o rosto conhecido.
— Essa câmera de segurança deve estar pior do que nunca. Não viu que era eu?
— Relaxa Ruy, trouxe alguma coisinha para vender?
A sala em que entraram era uma peça sem banheiro com uma mesa de madeira, duas cadeiras e um cofre. Um negócio de compra de ouro, em que não se pergunta procedência da mercadoria. O empresário – assim gostava que o citassem – se chamava Paulinho Meio-de-campo. Negro, careca lustrosa, terno bem passado, gravata, sapato encerado, e amigo de Ruy desde o colégio.
— Preciso de informações sobre um cara. Augusto Vilella, mas chamam de Guto. Produtor de eventos, shows: acho que está envolvido numa fria.
— Procurando manchete jornalista?
— Eu faço as perguntas Meio-de-campo. O negócio com esse cara é um servicinho por fora do jornal. Pode pingar algum no teu bolso, se tu tiveres uma história interessante.
Augusto Vilella ganhava a vida no meio cultural. Filho adotado de um poeta que conseguiu certa relevância nas letras. Além de autor, seu pai foi professor universitário e traduzia dos idiomas russo e inglês. Cresceu dentro de um gabinete abarrotado de livros, onde seu pai eremita, saia pouco. Herdou a sombra do professor, e era tido como inteligente. Procurava aparentar, pelo menos. Casado, tinha um filho já crescido. Mas ficava visível em seu convívio, sua índole homossexual. Nos negócios estava tão mal falado, que os fornecedores nada mais o vendiam consignado. Devia para muitos, porém, andava de carro do ano e morava no Lagos.
— É o que sei sobre o tal.
De pernas cruzadas, cigarro entre os dedos e bebendo a cerveja com calma, Ruy olhava para prédio do Centro de Artes. No início da noite, havia poucos clientes no Papuera: ”O que levaria o produtor a dar um tiro no artista? Se o Meio-de-campo falou que era visível que o cara era gay, esse não deveria ser seu primeiro caso fora do casamento. Antônio, creio, também não tinha uma grande quantia de dinheiro capaz de levar seu amante a tal ponto. Se é que chegaram a dormir juntos.
No entanto, aquela guria sofria como uma viúva. Parecia tão convicta da direção do caso, que não consegui recusar os mil reais de adiantamento. Sei que fui um canalha, mas veja, O Palpite não deu minha matéria hoje sobre o caso, na tevê não houve comentário algum. Está na cara que o departamento publicitário sofreu ameaças e calou os editores.
Tenho que aproveitar essa grana e cuidar para não pôr as mãos no fogo. Amanhã faço um relatório qualquer e entrego para a guria. Sonia né, Sonia de que?…”.
Alguns estudantes saíram da universidade e foram sentar às mesas do bar. Era o que Ruy esperava. Conversar com alguém que vivesse no contexto da academia de arte. Foi ali que Antônio conviveu nos últimos quatro anos, onde construiu sua breve carreira. Uma jovem de cabelos loiros estava em pé na esquina conversando com outras colegas, Ruy decidiu abordá-la.
Apresentou-se como detetive, disse estar investigando a morte de Antônio, e que não era policial. A jovem ficou com receio, mas aceitou sentar-se à sua mesa. Em princípio, ele apenas perguntou se ela conhecia o pintor.
— Claro, aliás, todos conheciam. Tu quer dizer mais intimamente? Um pouco. Fiz algumas cadeiras com ele. Era gente boa, acho que todos gostavam dele, se dedicava bastante a academia. Apresentava bons trabalhos nas aulas, mas era contido, sabia que podia melhorar e não se deixava levar por qualquer elogio. Estranho foi quando começou a namorar aquela guria. Nada contra, porém, eram muito diferentes. O sobrenome dela? Sonia de Andrade. Chegou de São Paulo faz um ano mais ou menos. Cínica por natureza. Gerava intrigas desnecessárias. Mimada para mais de metro. Quando começaram o namoro, todos acharam estranho. Mas, em arte tudo é possível. Ela tinha muito ciúmes dele. Ele contornava suas caras feias com sorrisos. Acho que se gostavam. As pessoas diziam que ela o comprava, tentava comprar tudo, tinha recursos sobrando. Pelo que ouvi trancou a matrícula e vai embora. Quando? Se não foi
hoje, deve ir amanhã.
Continua… (Confira a continuação de Cores Primárias aqui no ecult, na primeira quinzena de outubro/2019).
Leia: Cores Primárias – Capitulo 1 : O Jornal
Texto e foto: Lucian Brum – lucian.brum@ufpel.edu.br
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Folhetim – Apresentação:
O folhetim nasceu na França nos idos da primeira metade do séc. XIX, como uma estratégia de comunicação para conseguir fidelização dos leitores com o jornal diário, e consolidar a venda por assinatura. Todo dia o jornal publicava um capítulo da história, que girava em torno de temas cotidianos, e chamava atenção de leitores nobres, burgueses e assalariados. Ocorreu certa democratização da literatura, e se criou uma vitrine para escritores divulgarem seus nomes para um público mais abrangente que o das livrarias. Grandes obras foram publicadas no formato popular: Honoré de Balzac escreveu Ilusões Perdidas no jornal La Presse de Paris; Machado de Assis publicou Memórias Póstumas de Brás Cubas em edições da Revista Brasileira. Até os dias de hoje o estilo é o mais consumido nos meios de comunicação, no entanto, com o passar dos tempos, foi convergindo em radionovela, telenovela e atualmente chamamos de séries.
Acompanhe o folhetim Cores Primárias aqui no e-cult.
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Jornalista.
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