A concepção da Lama – Parte 2


Foto: Tadeo Pérez

Tentando situar Lama dentro dos vastos campos da música popular brasileira, Guerra enxerga possíveis “parentes mais próximos” em Walter Franco e Itamar Assumpção. “Mas é MPB, eu canto em português, não é música erudita e eu sou brasileiro”, ele diz, parafraseando o não muito benquisto (por ele) Lobão. “Eu sou um ex-roqueiro, criado no interior de Canguçu, sou um coloninho. Então esse é o disco de um coloninho que é louco pelo Kurt Cobain, pelo Stephen Malkmus, pelo Dorival Caymmi e pelo Noel Rosa”. Dentro da própria geração, ele diz que “tá na hora de abrir outro caminho a facão. Tá cheio de filho do Los Hermanos por aí, alguns até muito bons, mas sem superar os pais nego não vira gente grande nunca”.

O Fecanpop 2011, onde Guerra e Bassi se reencontraram, foi o catalisador de Lama, por iniciativa do produtor Haroldo de Campos, um dos jurados do festival. “Ele se interessou pela minha música, deixou um cartão e a gente começou a conversar”, conta Guerra. “Esse disco acabou não indo pra frente por falta de recurso financeiro mesmo. Neguinho depende de Procultura e boa vontade da iniciativa privada pra tudo.” A necessidade de registrar as canções levou o músico ao do it yourself. “O meio por onde as pessoas vão ouvir tua música pela primeira vez, quase 90% do tempo, é na internet. Tu faz o show aqui e ali e o disco, que na verdade tu produziu artesanalmente, dá pra dizer, é um souvenir do teu show. Que o cara foi no show, curtiu e compra o CD”.

Mas a parceria com a Nota Azul Produções Musicais, de Campos e Sulimar Rass (“caras tri gente boa, tri bem intencionados”, ele faz questão de ressaltar), foi mantida, pela intermediação da irmã-empresária. “A gente só tá gravando hoje porque eu entreguei tudo na mão da minha irmã”, ele conta. “Ela que foi conversar com o Haroldo, pra ver como é que a gente ia definir a situação, já que eu ia gravar o disco com ele, cheguei a gravar as guias no estúdio, e o disco não saiu. O que a gente pode fazer pra ficar todo mundo satisfeito”. No final, ele vai ficar com dois discos de estreia, o CD e o DVD do show, que vai contar com todos os músicos presentes em Lama e músicas que ficaram de fora do CD.

O ESTÚDIO
O estúdio caseiro era originalmente uma lavanderia, cedida pela mãe de Guerra. “Ela disse ‘vamos fazer um estúdio pra ti, porque lá no teu quarto tem aquela bagunça, tu também não tá conseguindo gravar direito. Mudou a máquina de lavar para a cozinha, desocupou essa peça, veio aqui, limpou tudo, arrumou”. Eles deixaram um armário e adicionaram um sofá. “Ia sair tudo, mas não deu, porque tava ressonando demais, tava uma bosta”. E o local tem vantagens. “Aqui tu não precisa de isolamento, porque não tem barulho. Por isso que a gente grava de noite também, porque de dia tem a minha sobrinha gritando, tem gente chegando, gente batendo na porta, tem minha mãe gritando da cozinha fazendo o almoço”. Ele diz estudar técnicas de gravação e mixagem há algum tempo e tem utilizado um notebook com REAPER e softwares open source, como Audacity. O “hardware” é o somatório dos músicos, como os cinco microfones que se revezam no estúdio. “Comprei algum equipamento, o Eugênio trouxe as coisas dele todas pra cá e minha irmã conseguiu a grana pra replicagem com as empresas de Canguçu”.

Foto: Roberto Soares Neves

PAPO NA COZINHA
Quando resolvi voltar ao complexo estúdio-sala, encontrei Bassi no meio do caminho, anunciando uma conquista. “Eles tavam se amarrando pra gravar o pandeiro. Eu falei ‘me dá isso aqui que eu vou gravar de primeira'”. Dito e feito. “Ele é melhor músico que eu e o Diego”, elogia Guerra. São de Bassi algumas das vinhetas que vão ligar as músicas no disco. “Ao invés de fazer um disco gravado em casa ‘imitação’ de disco caro, vamos fazer um disco gravado em casa de verdade. As vinhetas são todas coisas que a gente gravou com um ou dois microfones, ao vivo. Tem até uma gravada com o gravadorzinho portátil do Eugênio, na cozinha mesmo. Deixa ainda mais evidente que a parada foi feita em casa”.

Eles resolveram fazer uma pausa para o café, e a cozinha foi o ambiente e o assunto da próxima sessão de bate-papo, já no meio da madrugada.

GUERRA – Isso foi no primeiro dia de gravação. A gente chegou e começou a achar muito frio naquela peça. Tinha fogo no fogão a lenha, na cozinha. A gente veio pra cozinha, trouxe notebook, trouxe tudo.
BASSI – Aquele dia tava zero grau.
GUERRA – Aí nós montamos tudo aqui, e gravamos. Tinha barulho de sacola, tinha barulho de fósforo, que a gente gravou.
BASSI – Riscamos o fósforo, pô, ficou tri bom aquele fósforo.
GUERRA – Em outra música a gente queria dar a intenção de máquina de escrever, e não tinha uma máquina de escrever aqui. A gente pegou um papel, botou em cima da mesa, o Eugênio dobrou a folha e bateu em cima da mesa, fez o som de máquina de escrever. Aí o cara afinou uma garrafa em sol e outra garrafa meio tom abaixo, duas PETs, pra fazer os graves da música, em vez de usar baixo.

Como se afina uma garrafa?

GUERRA – Com água. Dependendo da quantia de água que ela tem, é o som que ela vai dar.
BASSI – O problema do sopro da garrafa é o “ataque”. É difícil de encaixar o ataque bem na hora certa.

Foto: Tadeo Pérez

Mudando de assunto, Guerra conta por que o Sapatinho não vai estar presente em todo o processo. “Eles vão gravar percussão, só que eles são músicos de baile. Tipo o Ita, que é o cara que me botou pra dentro da banda. Ele é sargento aposentado da Aeronáutica. Ele é uma entidade, ele não é uma pessoa, ele é um malandro típico, que eu tinha que colar pra aprender. Mas nesse sentido eles são assim, uma banda antiga, a maioria são parentes, e é tradição de família. Então a onda deles é outra, eles não vão vir aqui ‘se socar’ pra ficar gravando horas e horas. Pra eles, música é aquilo ali: ‘Vamo pro palco?’ ‘Vamo pro palco’. ‘Tem que tirar tal música’. Tu dá o CDzinho e ele diz ‘tá na mão’”. Além do trio, tocam em Lama Joberson Rosa, Maithan Knabach, Hyttajair Rosa (o Ita), Tony Marques, Jadir “Guinho” Rosa, Eber Barbosa. Entre músicos, família e outros, ele calcula pelo menos 14 pessoas nos créditos. “No disco tá todo mundo trabalhando no amor, músicos, designer, marqueteiro, todo mundo”.

De alguma forma que eu não percebi, o foco passou de 31 de Dezembro para Inclemente, e voltamos todos para terminar o papo no estúdio, antes da gravação. Lá, a dupla Guerra e Bassi expôs suas ambições imediatas para o disco.

GUERRA – O produto final é legal, mas é isso, é o produto final. Não é desprezando produto, mercado, não é isso. Mas é um produto. O que o cara considera que é a arte mesmo, que é o barato, é o processo. Arte é isso aqui, é quando o cara tá fazendo a coisa. Esse é o momento da arte. Por isso que talvez seja tão legal a gente tentar esse caminho de capturar o processo mesmo, de gravar um bagulho na cozinha, o cara sentado no sofá e tu pegar quase uma risada do Diego, que pegou junto com um tamborim. Que bom se o cara conseguir passar esse momento pra quem vai ouvir o disco. Que consigam ouvir o disco pensando “pô, esses caras se conhecem, esses cara se sentaram juntos pra tocar”.

BASSI – O Hermeto Pascoal fala uma coisa que eu acho muito interessante, “o povo não quer saber de nada, o povo quer sentir”. Eu já vi caras tocando no Conservatório de Música, que estudam muito, pra tocar muito bem uma peça, eles vão tocar e eu vejo uma frieza, uma preocupação com a técnica na hora de tocar, e uma não preocupação com a música. E aí é que tu notas quem é que tem, como se diz, o feeling. Se pega um cara que nem o Serginho, eu fico emocionadíssimo quando eu vejo ele. Claro que ele tem uma coisa assim até exagerada, às vezes. Mas eu aprendi muito com ele, eu toquei durante um ano e tanto com ele. A coisa do palco, sabe. Porque eu sempre toquei encolhido, assim, me escondendo. E ele não, ele vai e mostra a cara. E o que a gente faz aqui no estúdio é equivalente a essa coisa. É trazer pra cá essa coisa mais viva.

GUERRA – Até porque tudo que o cara tá falando, “dar o clima”, “transmitir essa sensação de processo”, isso é sutil. O ouvinte não vai pensar “ah, eles deram a intenção”, e até se o ouvinte pensar isso, a gente fez errado. Isso é um troço que o cara tem que sentir quando estiver ouvindo a música.

BASSI – É uma utopia, na verdade.
GUERRA – É uma utopia. Antes de gravar o violão de Inclemente, que nós temos que gravar agora, já, o violão de Inclemente, eu quero trocar todas as minhas declarações pretensiosas sobre arte por “eu aprendi a tocar violão pra pegar mulher”.

(Risadas gerais.)

BASSI – A coisa mais importante é o cara chegar no fim desse processo todo e escutar o que foi gravado, escutar a produção final, e ter prazer de ouvir aquilo. Ter prazer.

O prazer em tocar e ouvir música rendeu mais alguns minutos de assunto e até uma versão de Só Pra Contrariar, que, confesso, não soou tão ruim. Tendo que me preparar para a volta, de ônibus, no sábado de manhã, fui dormir e deixei o trio sozinho mais uma vez. Quando acordei, 31 de Dezembro estava milagrosamente pronta. Aparentemente, vai sair tudo como planejado, e Lama ganhou um pré-lançamento em Pelotas. Peguei o ônibus mais uma vez junto com Bassi e Portella, de virada. Não sei se foram rindo da dor, mas certamente rindo do sono.

Por Roberto Soares Neves

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