Fill – Filipe Fontoura por Paulo Ienczak


Filipe Fontoura. Blood Fill. Filósofo, insano, lírico e letal. Senhor Confuso. Rimador do Interior. Fill VDC (vaidanadacrew). Fill.

Por: Paulo Ienczak

“Às vezes um cidadão muda de nome, se cansa, e começa a usar um microfone”.

O ano era 2010, início desta década, que agora se aproxima do fim. A Central Única das Favelas (CUFA), filial de Pelotas, promovia o evento Rap Popular Brasileiro (RPB). Uma das atrações daquela tarde era uma batalha de rima, modalidade muito popular naquele ano, em parte pelo recente sucesso a nível nacional de nomes como Emicida, Rael da Rima, Rashid e Projota.

O movimento Hip Hop em Pelotas não era uma novidade – as batidas e rimas deram as caras por aqui lá pelo final da década de 80 – mas havia uma nova geração que chegava fazendo barulho. Pok Sombra era um nome reconhecido dessa nova leva de rappers, e era na casa dele, num PC antigo e estúdio improvisado, batizado de “Santuário Sala”, que nasciam muitas das rimas e batidas dessa escola do rap chamado “underground”. Mesmo esse respeito que o nome Pok Sombra evocava não abalou a confiança de um novo Mc, ainda desconhecido do público, que participou da batalha naquele dia.

Fill – Foto: Lucian Brum

Filipe Fontoura era um cara branco, baixa estatura e de nariz levemente avantajado, característica muitas vezes usada como artifício nas rimas dos seus oponentes, desesperados para revidar. Nesse dia, há quase 10 anos, o Pok, conhecido da galera, era um dos favoritos na batalha. Naquele dia, para mim e acredito que para muitos dos que estavam lá, foi a primeira vez que ouviu-se falar de Blood Fill. O cara impressionou e levou o 1º lugar, chegou até a ser desafiado por Jholk, outro Mc também conhecido nas rodas de rima, mas a batalha ficou para a sexta-feira seguinte, no InRua (pelo que eu sei, nunca chegou a acontecer).

Ninguém imaginava, naquele contexto do rap pelotense, que se ouviria falar tanto desse nome. Nessa quase uma década, o Filipe foi de BloodFill a Fill VDC, para depois apenas Fill, que tinha por trás o significado de Filósofo Insano Lírico Letal. Ele e Pok Sombra não se tornaram inimigos, mas grandes parceiros, na música e na vida.

Rimador do Interior
Filipe amava de verdade ser o Fill. E isso trazia um grande peso, uma grande responsabilidade, porque para o Fill existir, muita coisa estava em jogo. Não é fácil ser um rimador, ainda mais no interior. Não é fácil para qualquer um, aos 20 e poucos anos, lidar com a pressão da família, da sociedade, da vida adulta. Às vezes a gente só queria acordar e a realidade ser de novo só “vinho e freestyle”.

Muitos vivem a música por um tempo, como apenas um hobbie, ou uma fase, e depois seguem em frente. Aderem ao que a sociedade considera uma vida “normal”. Outros não conseguem fechar os olhos para a hipocrisia da sociedade, para a verdade de que seguimos na vida sem saber qual é o sentido dela, e vivendo em um mundo cheio de injustiças, contra as quais não temos muito poder.

Muita gente achava o Fill “louco”, ele mesmo se intitulava assim, mas hoje em dia qual o sentido de ser louco? Não é preciso um pouco de loucura para seguir em frente, e sorrir, em uma sociedade como a nossa? Por outro lado, também não é preciso ser um pouco louco para se recusar a aceitar tudo isso, confrontar, questionar e buscar alternativas?

“Vivo a maldição de saber que os loucos têm sempre razão” Fill – Infame.

Família
O rap, para todo mundo que já se envolveu a fundo nesse universo, é mais que um movimento cultural, é uma família. Em alguns momentos, a única família com que alguns podem contar. Alexandra Pereira “Xanda”, produtora cultural pelotense, costuma chamar as pessoas com quem trabalha, os amigos do rolê do Hip Hop da cidade, de filhos e filhas. É a mãezona da galera.

Guido CNR, rapper pelotense que é um pouquinho mais velho do que o resto do pessoal da cena (apesar de não parecer, por seu estilo jovial), já acolheu muito moleque novo, que gravou pela primeira vez no seu estúdio. É o irmão mais velho de muita gente.

Fill, em diversos momentos, teve o apoio dessa segunda família, dessa extensão da família, que tem como laço principal as ruas, a vivência da música. Com isso, essa noção da lealdade, do companheirismo e da amizade de pessoas como a Xanda, o Guido e tantos outros, fez o Filipe se reaproximar da sua família de sangue, de sua mãe e seu padrasto.

Ser humano
No dia 23 de agosto de 2014 Fill lançava o clipe de “A volta do que não foi”. Nessa letra ele comenta “fiz sons pelo momento e me arrependi depois”. Também destaca a mudança de nome de Blood para apenas Fill. O Filipe era um cara assim, em constante mudança. Às vezes confuso, mas porque, na verdade, era inquieto, buscava evoluir, e era um ser humano, que comete erros, mesmo tentando acertar.

No último dia 23, todo mundo que mora em Pelotas, seja do rap ou não, ouviu falar do Fill. É impressionante quantas pessoas o conheciam, quantos amigos ele tinha no rap e fora dele, quantos moleques o admiravam.

Também não foram poucos os relatos nas redes sociais, postados por amigos e companheiros da música, sobre como já tinham se desentendido com o Fill em algum momento. Muitos discordaram dele, outros chegaram a brigar e se afastar. Mas o que chamava atenção nesses relatos é como, depois de um tempo, era o próprio Fill quem procurava essas pessoas, pedia desculpas se fosse o caso, reconhecia os erros e se propunha a seguir em frente.

O fim de um ciclo é sempre difícil, triste, um momento para o qual a sociedade não nos prepara, mas que faz parte do jogo da vida. Nessas horas é também um momento de pensar, refletir, ver que uma vida também poder ser uma mensagem.

O que ficará para sempre, além das músicas, é a certeza de que não temos todo o tempo do mundo. Agora é o melhor momento para pedir um perdão, reconhecer um erro, melhorar na vida e, se quiser, até mudar de nome.

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