A Hipocrisia


Fotografia: Sebastião Salgado

ContoNet

Para Limpar a Poluição de nossos Ouvidos!

Fotografia: Sebastião Salgado
Fotografia: Sebastião Salgado

Aos nove anos, a garotinha sabe bem o que quer. Deixa sua mãe e seus oito irmãozinhos dormindo, escapole furtivamente do casebre, sobe a ponte que cruza o bairro e entra em um ônibus circular – o último da noite. Embora decidida, seus olhinhos arregalados e passos vacilantes não escondem seu medo da noite e da solidão. Caminha então pelas mal iluminadas ruas dessa cidade histórica semi-esquecida, e fantasia os dias de glória e riqueza de uma época há muito esquecida. Finalmente, chega ao limite de uma rua escura e, após breve hesitação, bate à porta do número 273. Uma senhora imensa, gordurosa e com um avental imundo a recebe, e a pede para esperar. Após alguns minutos de espera na rua úmida, esburacada e mal cheirosa, a porta é novamente aberta e ela recebe seu tesouro: uma caixa de papelão velha, já manchada e amolecida, contendo o que sobrou da feira daquela manhã de quinta. Entre aromas duvidosos de legumes e frutas apodrecidas, pela viela escura a garotinha volta: resignada com sua sorte, o tesouro firme em suas mãos.
Interior de um luxuoso apartamento. Jovens de óculos, bebendo vodka, discutindo arte e antropologia, citando Leibnitz, ouvindo Johny Dodds, exaltando suas idéias socialistas, fumando um baseado entre Simone de Beavouir, Sartre, Claudell, Spinoza, Nietzsche, kieerkgard. Após noites de alto intelecto como esta, tais jovens revolucionários deitam suas cabeças sobre macios travesseiros de penas de ganso sonhando excentricidades, enquanto Clara, de nove anos, é violentada e estuprada bem abaixo de suas janelas.

Isis Araújo
e-Cult