Grupo de Pesquisa da UFPel lança o livro Música, Memória e Sociedade ao Sul


Foi lançado no dia 31, na Feira do Livro do Cassino, a obra Música, Memória e Sociedade ao Sul, que tem como organizadores Isabel Nogueira, Francisca Michelon e Yimi Walter Premazzi Silveira Junior, membros do Grupo de Pesquisa em Musicologia da UFPel.

O Grupo, criado em 2001, tem trabalhado na catalogação e análise de fontes primárias sobre a música nos jornais e revistas da primeira metade do século XX, análise de iconografia musical, música e gênero e história das instituições de ensino musical no Rio Grande do Sul, com o objetivo de refletir sobre a memória e o patrimônio musical da cidade de Pelotas e do Rio Grande do Sul.

Além do enfoque de investigação sobre a história das instituições de ensino musical, o grupo tem refletido sobre as relações entre musicologia e performance, a partir do estudo de programas de concerto, iconografia fotográfica e histórias de vida de intérpretes e professores de música.

Neste livro apresentamos uma coletânea de artigos em uma retrospectiva dos projetos de pesquisa desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa em Musicologia da UFPel nos últimos dez anos. Com o objetivo de não sobrepor publicações, já na seleção do material, decidimos publicar somente o que não havia sido anteriormente publicado em meio impresso, em livros, capítulos de livros ou revistas acadêmicas. A escolha recaiu então sobre nossos trabalhos apresentados em congressos e simpósios e que não foram impressos em anais, bem como sobre os trabalhos inéditos. Nesse sentido, publicações eletrônicas foram incluídas, assim como textos publicados em anais de congressos, publicados pelos pesquisadores participantes do grupo de pesquisa, alguns deles em co-autoria com os alunos bolsistas.

Trecho do prefácio, do musicólogo paulista Paulo Castagna

Entre os temas abordados neste livro estão a documentação institucional e o estudo do significado do Conservatório de Música de Pelotas em vários períodos históricos, com a utilização de informações minuciosamente recolhidas em periódicos antigos, além de aspectos do ensino musical, da difusão de música e da crítica musical no Sul do Brasil, especialmente na cidade de Pelotas. Destacam-se, nestes 10 anos de atividades do Grupo de Pesquisa da UFPel, o interesse no contato com a prática de gêneros musicais argentinos no Brasil (tango e milonga) e com a abordagem do papel feminino na atividade musical do sul brasileiro, propostas que apontam para tendências mais integradoras da atualidade, como os estudos de gênero e o intercâmbio de experiências musicais entre as diversas regiões da América Latina.

Os trabalhos aqui impressos são um exemplo interessante dessa mudança de pensamento. Para além da eleição das divindades cuja chegada na Terra caberia ao pesquisador explicar, o Grupo de Pesquisa em Musicologia da UFPel partiu de uma necessidade real das pessoas envolvidas com a atividade musical no Sul do Brasil: como a prática e audição da música beneficiou as pessoas daquela época e como o musicólogo da atualidade poderia estender esse benefício para o presente? Afinal, não foram os grandes gênios que trouxeram os benefícios da prática e da audição de música para os moradores das regiões estudadas pelo Grupo de Pesquisa, mas sim as instituições dedicadas a essa arte e, sobretudo, a grande quantidade de pessoas envolvidas nesse processo. Nessa direção foram estruturadas ações que partiam das pessoas do presente e não dos mitos civilizatórios que nos poderiam ter sido impostos. Foram então incluídos, nessa abordagem, vários fenômenos relacionados à vida das sociedades daqueles tempos e lugares, não importando se eles possuíam ou não alguma posição na suposta e divina hierarquia civilizadora.

O Grupo da UFPel procura saber quais foram as ações do passado que contribuíram para sustentar a nossa vida no presente, através da atividade musical. Não exatamente quais foram os objetos produzidos e como eles eram, mas quais foram as ações eficazes que nos ajudaram a fazer o que fazemos. Em outras palavras, o Grupo atua diretamente no fortalecimento do nosso próprio valor enquanto sujeitos construtores da vida, a partir da inclusão, nos estudos acadêmicos, das instituições e convenções nas quais nos sentimos representados: regiões geográficas, estados e cidades, conservatórios, universidades. Aqui também entram repertórios, estilos e técnicas, instrumentos e conjuntos musicais, períodos históricos, intérpretes e compositores. Ao discorrer sobre alguns desses aspectos, muitas vezes estamos indiretamente tentando dar voz ao nosso sentimento de exclusão do universo intelectual, por onde desfilavam quase somente grande gênios, grandes instituições, grandes obras, grandes orquestras e assim por diante. Não havia lugar para nós nesse panteão de celebridades e semideuses: nossa função era apenas a sua adoração e nossa auto-imagem era apenas a de meros mantenedores de sua divindade e lamentadores de nossa mortalidade.

Nesse sentido, é preciso destacar a habilidosa estratégia do Grupo de Pesquisa em Musicologia da UFPel, que não apenas serviu-se da Instituição para exercer o seu trabalho, mas, respeitando a herança recebida, cuidou de seu arquivo, incluiu-o no rol dos acervos dignos do olhar musicológico e deu à Universidade um passado que talvez não existisse caso esse arquivo fosse abandonado à deterioração. A quase inexistência de acervos sobre instituições de ensino musical no Brasil possui forte relação com essa auto-exclusão do panteão de celebridades: se éramos apenas meros servidores de celebridades divinas, por que seria necessário dedicar tempo à documentação de nossa própria vida? Mas agora essa visão já não nos convence mais, e as instituições que nos acolhem podem ser entendidas como tão ou mais importantes do que os dourados mecenas e os luxuosos palácios do passado glorioso. Diria, com certeza, mais importantes ainda, porque nossas instituições nos ajudam a cuidar de nossas vidas, enquanto os palácios da Antiguidade dificilmente o farão.

Criar, organizar, catalogar, disponibilizar e estudar arquivos é como levar um conhecimento da ‘sombra’ para a consciência, de acordo com a terminologia do psicanalista Carl Gustav Jung (1875-1961). Os objetos reunidos nos arquivos são os mesmos que já existiam antes de passarem por essa ‘iluminação’, mas o que muda é a maneira de vê-los, surgindo com eles uma nova relação e, sobretudo, uma nova função no presente. Deixar apodrecer acervos tão relevantes para nós, sobretudo aqueles referentes às instituições que nos apóiam, equivale a julgar-nos muito superiores à herança que recebemos. E não se trata de impor essa herança sobre as demais, mas de reconhecer sua real participação na construção de nossa vida. Obviamente ainda temos muito a desenvolver nessa direção, mas se podemos fazer isso com arquivos, podemos fazer o mesmo com os demais aspectos de nossa atuação profissional, de nossa contribuição acadêmica e, em um sentido mais amplo, com os demais aspectos de nossa própria existência.

Incluir as nossas vidas e a de outros no foco de nossas investigações musicológicas – que, a partir disso, tornam estranha a denominação ‘objeto de pesquisa’ – é uma maneira de sair de uma musicologia de objetos para uma musicologia de valores humanos, dando a ela uma função mais efetiva no mundo contemporâneo, cuja maior necessidade é, justamente, a garantia da vida. E em uma postura mais radical, somente dessa maneira seria possível reconhecer a musicologia como parte das ciências humanas, pois a musicologia de objetos, de partituras, de fórmulas, de medidas, de gráficos, de estatísticas, de tabelas, de classificações, de sinais, de números, de códigos, de formas, de técnicas e de cálculos tem mais relação com as ciências exatas do que com as ciências humanas. Aqui está, portanto, um dos grandes desafios da musicologia contemporânea: apresentar-se realmente como ciência humana e, sobretudo, com função humana.

Se o Grupo da UFPel já demonstrou intensa prática dessa inclusão de nós mesmos na musicologia, seus estudos de gênero apontam para a expansão do conceito de inclusão, na direção de uma musicologia que traga benefícios diretos à vida e não somente às instituições, às carreiras, às associações e à área de Música. Esse tipo de pesquisa reverte, com muita eficácia, a exclusão da barbárie praticada pelas cegas linhas de influência, incluindo de outros aspectos da vida – de nossa vida – que não faziam parte do panteão de celebridades, como foi o caso das mulheres bíblicas. E não apenas as mulheres foram excluídas das linhas de influência musicológicas, mas sim um amplo universo humano que talvez nem sejamos capazes de enumerar, pelo próprio desconhecimento que temos dele.

Provavelmente já estejamos próximos da cura desse sentimento de exclusão de nós mesmos e possamos nos dedicar mais, como fez o Grupo da UFPel, à inclusão de outros aspectos humanos a uma musicologia mais sistêmica e mais complexa: outras cidades do Sul, outras regiões do Brasil, outras regiões americanas, outras regiões do mundo, outros habitantes do Sul, do Brasil, das Américas e do Mundo, outros espaços de circulação da música, outros jeitos de se cantar e tocar, outros meios ou instrumentos de produção musical, outras finalidades da prática musical, outras funções da música, outras músicas, outras épocas, outros tipos de pessoas, outras idades de pessoas, outras preferências das pessoas, outras relações entre pessoas, outras pessoas, outras necessidades de música, outras necessidades de musicologia, outras necessidades…

O que a academia – em suas mais distintas áreas – pode fazer hoje pela vida humana é uma pergunta bem mais relevante do que o dispêndio das próximas décadas apenas na discussão das nobres realizações do passado, lembrando que, nesse ciclo vicioso, nossa falta de criatividade no presente poderá muito bem ser tema de interessantes discussões do futuro. Temos agora a tarefa de incluir na musicologia o outro, seja lá qual for ele, como o destinatário de nossa atividade investigativa, ou seja, como diretos beneficiários do nosso trabalho, além de nós mesmos.

Talvez não sejam mais tão úteis, na atualidade, as tentativas de divisão rigorosa dos campos da musicologia, que geralmente disfarçam a divisão entre o que consideramos ‘nosso’ e o que deixamos para ‘eles’. Nicholas Cook, no artigo “Agora somos todos (etno)musicólogos” (Ictus, Salvador, v.7, p.7-32, 2006), já constata que tanto os etnomusicólogos estão começando a dirigir sua atenção e seus métodos também para as práticas da música de concerto, quanto os musicólogos estão se preocupando mais com as sociedades e como os aspectos humanos da criação e da prática musical. Se a divisão da musicologia foi uma preocupação dos séculos XIX e XX, o desenvolvimento dessa atividade requer hoje posturas multi, inter e transdisciplinares, e talvez mesmo algumas contribuições indisciplinares.

Pesquisadores deveriam ser pessoas capazes de resolverem problemas (ou desafios) da sociedade e, de maneira ampla, da vida humana, e não pessoas acima da sociedade ou da humanidade e que usam seus recursos para se dedicar exclusivamente a questões institucionais ou, o que é pior, a questões meramente pessoais. Por isso a existência dos pesquisadores – neste caso musicólogos – somente se justifica pela tarefa que assumem diante da vida. Ninguém vai ao médico para receber um diploma de participação na consulta, enquanto um médico não serve apenas para solicitar bolsas nas agências de fomento: esperamos do médico que ele cuide de nossa vida através de sua habilidade médica. Esperamos que um dentista cuide de nossa vida por meio da odontologia, que uma escola faça o mesmo por meio dos cursos que oferece e que os governos também o façam pela administração igualitária da sociedade. Cabe, portanto, ao musicólogo, cuidar da vida através da musicologia, não importando os meios que ele ou ela escolham para isso, desde que o esperado cuidado se realize.

O que nos anima bastante é a percepção de que, apesar de tudo, a musicologia inclusiva, de valores humanos e de cuidado da vida começa a ser cada vez mais refletida, no Brasil e no exterior. Obviamente essa não é uma tendência nova na musicologia e menos ainda no universo intelectual: filósofos e escritores há milênios discorrem sobre o mesmo assunto, porém a civilização industrial nos ajudou a esquecê-los. Temos agora a oportunidade de participar da revitalização dos valores humanos e do cuidado da vida que esses antigos pensadores defendiam e que muita gente no presente está praticando. Recriemos a musicologia, como a vida recria a vida. A musicologia da vida valoriza, antes de tudo, a vida da musicologia.

Fonte:
Coordenadoria de Comunicação Social
Universidade Federal de Pelotas