Folhetim Cores Primárias – Capítulo 2: Retrato por Lucian Brum


Capítulo 2: Retrato (Confira aqui o Capitulo 1: O Jornal)

O despertador tocou insistente no quarto escuro. Na segunda soneca de cinco minutos, Ruy Fernandes achou ânimo para se virar na cama e desligá-lo.

O brilho do smartphone iluminou o tampo do criado mudo e proporcionou uma meia-luz à alcova inebriada. Ruy sabia que ainda era cedo, o alarme retumba todos os dias no mesmo horário. Virou-se na direção da cômoda e acendeu o abajur, abriu a gaveta do móvel, revirou com a mão uns objetos, ruídos de metal arranharam o fundo de madeira, jogou alguns papéis para fora e fechou o compartimento. Não encontrou o que procurava, sabia que não iria achar. Depois de dois anos de abstinência, a vontade de tragar um pouco de fumaça o sufocava com tamanha angústia. A conversa com Sonia no dia anterior o tinha deixado intrigado. Levantou de prontidão, vestiu seu jeans surrado e uma camisa branca com o colarinho amarelado que rolavam no pé da cama. No banheiro, enquanto lavava o rosto, encarou seu reflexo no espelho. Aparentava mais idade do que tinha, nem havia chegado aos quarenta: “será que eu não deveria maneirar?”. Incomodado com as dúvidas, Ruy disse para si mesmo: “Dane-se”. Com o sol já iluminando a manhã, abriu a porta do seu prédio, e foi em direção a seu destino.

Tomando café em uma mesinha de calçada, na padaria a duas quadras do seu apartamento, com um maço de Camel no bolso da camisa, Ruy voltou a refletir sobre a história que Sonia o tinha contado, e a proposta que lhe havia feito. O dinheiro que ela estava disposta a pagar soava interessantíssimo para ele, muito além do salário que recebia no jornal: “Porque essa guria cismou que eu posso dar uma de detetive”. “Sei reportar assassinatos, não solucioná-los”. Pensava que talvez pudesse se arriscar de mais, porém, quinhentos reis por dia é um dinheiro considerável. Compraria uma jóia para Cora, mandaria entregar junto a um buquê, talvez ela voltasse a atender suas ligações. Queria reatar com a namorada, sentia sua falta. Iria aceitar o trabalho, sem remoer mais dúvidas. Ligou para o jornal e avisou que dessem as pautas do dia para o foca, pois não ia trabalhar. Era uma tacada arriscada, mas precisava investir. Tomou o último gole do café, riscou um fósforo na caixinha e acendeu um cigarro, tragou a fumaça profundamente e teve uma sensação de alívio.

No dia anterior, ao saírem do jornal, Ruy e Sonia foram sentar em um café no Mercado Central. A guria, ainda muito nervosa, vestida de luto para acompanhar o enterro, insistia em dizer que sabia quem tinha matado Antônio.

— Porque tu não foste contar para a polícia? — Perguntou o jornalista.

— Tenho medo — respondeu, tirando os óculos e mostrando os olhos vermelhos de choro.

Antônio Castro havia se tornado popular após sua exposição individual. Uma revelação: estampando manchetes de jornais, e exibido para toda região pela televisão. Expressava-se com uma oratória paciente, desenhando as palavras. Transmitia propriedade ao falar sobre sua pintura. Cumprimentava sem esperar ser cumprimentado. Vestia-se com sobriedade, tanto que, no universo expressivo das artes, era tido como comum. Sua definição pelos colegas era quase unanime: “Gente boa”. No entanto, principalmente, após seu triunfo de mercado, tornou-se um artista requisitado e invejado.

Antônio havia arrendado um galpão que transformou em atelier. O lugar era grande, sala para recepção e reunião, e um espaço que decidiu alugar para outros artistas produzirem. Foi nesse ambiente que conheceu Guto, produtor cultural. Representando clientes que tiveram conhecimento do trabalho de Antônio, Augusto Vilella ia ao atelier para tratar sobre a execução de retratos. O pintor visitava os clientes que posavam em suas casas, era feito diversos rascunhos, fotografias, e a pintura era realizada a partir dessas amostragens. Guto sentiu inesperada simpatia por Antônio. Ao decorrer, foi aumentando a demanda do pintor com os contatos que possuía. Guto produzia espetáculos de música, quase todos no teatro Guarany, e convidou Antônio para assistir alguns shows com ele. Viraram amigos, trocando ideias, intimidades, e discutiam arte pelos cafés da cidade. Em meio a essa nova ligação, Sonia, que namorava Antônio há alguns meses, perdeu parte da atenção do artista. Entretanto, foi em uma noite que decidiu procurar o namorado, que viu os amigos entrando no atelier, vinculados num afeto exagerado.

Com os cotovelos apoiados na mesa, limpando as lágrimas que não cessavam em cair, Sonia repetia para Ruy:

– Eu sei que foi ele, foi ele, eu sei…

Continua… (Confira a continuação de Cores Primárias aqui no ecult, na primeira quinzena de julho/2019).

Leia: Cores Primárias – Capitulo 1 : O Jornal

Texto e foto: Lucian Brum – [email protected]

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Folhetim – Apresentação:
O folhetim nasceu na França nos idos da primeira metade do séc. XIX, como uma estratégia de comunicação para conseguir fidelização dos leitores com o jornal diário, e consolidar a venda por assinatura. Todo dia o jornal publicava um capítulo da história, que girava em torno de temas cotidianos, e chamava atenção de leitores nobres, burgueses e assalariados. Ocorreu certa democratização da literatura, e se criou uma vitrine para escritores divulgarem seus nomes para um público mais abrangente que o das livrarias. Grandes obras foram publicadas no formato popular: Honoré de Balzac escreveu Ilusões Perdidas no jornal La Presse de Paris; Machado de Assis publicou Memórias Póstumas de Brás Cubas em edições da Revista Brasileira. Até os dias de hoje o estilo é o mais consumido nos meios de comunicação, no entanto, com o passar dos tempos, foi convergindo em radionovela, telenovela e atualmente chamamos de séries.

Acompanhe o folhetim Cores Primárias aqui no e-cult.
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