Altruísmo no Teatro por Vagner Vargas


Foto: Kelly Schmidt Fotografia

No final de semana, dias 07 e 08 de abril de 2012, Pelotas recebeu o espetáculo “Os Altruístas”, de Nicky Silver, com direção e adaptação de Guilherme Weber, tendo no elenco Mariana Ximenes, Kiko Mascarenhas, Jonatahan Haagensen, Miguel Thiré e Stella Rabello. Nos dois dias em que a peça foi apresentada, observamos o Teatro Guarany cheio, mas não lotado. Não existiria público suficiente para lotar a casa de espetáculos, ou os altos preços dos ingressos acabam inviabilizando que a maioria da população tenha acesso a esses eventos culturais em nossa cidade? Seria esse o preço de ter nomes televisivos no elenco ou os custos com o aluguel de um teatro privado de grande porte, todo o aparato técnico necessário na apresentação e os custos locais para a vinda de artistas de fora da cidade que acabam encarecendo os ingressos?

O título da peça oferece um caráter crítico por si só, já que a palavra altruísmo pode ser associada a um significado de solidariedade. Assim, os fatos transcorridos durante a história questionam até que ponto uma atitude pode ser benevolente, dependendo da perspectiva de análise que se tome. A montagem apresenta uma estética não realista em todos os seus aspectos de concepção, o que, particularmente, considero como um ponto favorável à construção de repertórios estéticos diferenciados dos tradicionais televisivos que predominam na população brasileira.

Logo de início, somos confrontados com um visagismo muito coerente com proposta de concepção do espetáculo. A cenografia de Daniela Thomas propõem elementos funcionais capazes de criar a atmosfera sombria em que os personagens estão submersos. Além disso, o figurino de Emília Duncan e Antonio Frajado criaram uma identidade visual para os personagens o que, de início, gerou surpresa e desconforto nos espectadores, já que confronta as identidades de gênero normatizadas pela sociedade brasileira. Quando os atores, com seus corpos musculosos, entram em cena seminus, vestindo peças de lingerie feminina, se portando de maneira andrógena, causaram reações de espanto e muitos comentários na plateia. Os espectadores ali presentes talvez tenham ido ao teatro na esperança de verem de perto os galãs e mocinhas das telenovelas. Entretanto, esses estereótipos midiáticos são quebrados logo de cara.

A iluminação de Domingos Quintiliano constroi uma dramaturgia competente no que se refere à criação de atmosferas taciturnas, depressivas e oligofrênicas que perpassam as histórias que envolvem os personagens. Além disso, a paleta de cores, a afinação das luzes e os efeitos estavam muito precisos, não deixando a desejar em nenhum momento. Saliento, ainda, a dificuldade de se fazer uma iluminação cênica, quando se utilizam espelhos no palco. Em nenhum momento, houve reflexo ou interferência de reflexo que não estivesse de acordo com a concepção de encenação. Aliás, os espelhos suspensos no ar propiciavam uma perspectiva de análise diferenciada para os espectadores. Mais uma vez, enfatizo as congratulações ao visagismo de Marcos Padilha.

Outro aspecto que gostaria de ressaltar se refere à trilha sonora contendo músicas de Bertold Brecht e Kurt Weil, dentre outros. As músicas e efeitos sonoros eram inseridos em momentos muito pertinentes, estando de acordo com as situações propostas. Refiro isso, pois não são poucas as vezes em que vemos peças de teatro com músicas e efeitos sonoros em desacordo com a proposta estética do espetáculo. Assim como a trilha sonora, a direção ficou a cargo do experiente ator Guilherme Weber, integrante e co-fundador da Sutil Companhia de Teatro, juntamente com Felipe Hirsh.

A concepção de encenação conseguiu criar uma identidade visual ao espetáculo não apenas no que concerne os aspectos técnico-estruturais, mas também em relação ao ritmo das cenas, às atuações, elocução dos textos, trabalho físico dos atores e recortes dramatúrgico-textuais. Em vários momentos, haviam duas ou três cenas ocorrendo simultaneamente, sem “sujar” ou causar “ruídos” na circunstância que recebia destaque. Essa situação, quando não realizada com competência, acaba prejudicando a qualidade do desempenho cênico. Por esse motivo, dificilmente, os diretores costumam utilizar esse recurso. Em “Os Altruístas”, isso não foi um problema, muito pelo contrário, foi uma ótima solução para desconstruir o sentido realista que uma narrativa linear teria, o que viria de encontro à proposta do diretor.

Guilherme Weber conseguiu mostrar que é um diretor competente não penas na condução de todo o resultado cênico da peça, mas também no que se refere às atuações. A “mão do diretor” ficou evidente na qualidade das interpretações e na proposta de construção das personagens. Entretanto, o elenco estava aquém dos resultados estéticos que as personagens teriam, caso fossem feitas por atores com uma bagagem de trabalho físico e vocal mais consolidada. Muitas vezes, aulas de canto, dança, ginástica e musculação não são suficientes para incrementar o repertório corporal dos atores, no intuito de fornecer-lhes a disponibilidade cênica que determinados personagens exigem. O que víamos, eram atores se esforçando para desenvolverem a corporeidade de suas personagens. Todavia, o efeito cênico não passava da “forma pela forma”, ou seja, movimentos marcados, ensaiados que não encontravam uma identificação corporal em consonância com a proposta estética para a concepção das personagens.

Além disso, apesar da proposta de desconstrução estilística da oralidade das falas – o que considero um ponto positivo do espetáculo, pois propicia outra relação do espectador com o texto que está ouvindo -, os atores não conseguiam sustentar a força cênica que esse tipo de proposta exige. Não foram poucas às vezes em que o texto e/ou a proposta não realista das falas perderam o seu sentido e força, devido ao excesso de uso. Considero esse tipo de experimentação extremamente válida, em especial, por ressaltar aspectos da teatralidade que costumam ser esquecidos em alguns espetáculos que apenas tentam deslocar outras linguagens artísticas para os palcos. No entanto, para que se atinja esse tipo de objetivo com competência cênica, precisamos de atores com um sólido repertório e preparação prévia para o trabalho em teatro que fuja das tradicionais montagens do teatro comercial oriundo dos grandes centros de mídia no Brasil.

Entretanto, não posso generalizar e cometer o erro de não destacar o trabalho do ator Kiko Mascarenhas que, além de dar o ritmo ao espetáculo, conduziu o time e desviou a fragilidade das atuações de seus colegas. Mesmo assim, caberia ainda ao diretor dosar melhor os momentos em que a personagem de Kiko cai nos estereótipos, pois o excesso de repetições e falsetes acabam por reduzir o potencial crítico da criação dessa personagem. Mas, acredito que esse ator conseguiria dosar a personagem na medida certa, pois demonstra possuir capacidade para tanto. Porém, em alguns casos, cabe ao diretor o olhar de fora para indicar esse tipo de caminho ao ator.

Ao chegar no teatro e ver algumas mulheres em seus longos vestidos e alguns homens em ternos bem cortados, fiquei imaginando qual seria a motivação que os teria levado até àquela casa de espetáculos para assistir a uma peça de teatro que, justamente, apresenta um olhar crítico ao altruísmo. Assim que a atriz Mariana Ximenes entra em cena e começa mostrar sua personagem, a imagem da mocinha pura, santa e casta das telenovelas brasileiras se esvaía. Mas, a maior parte das reações de desconforto na plateia se referiam à androgenia dos personagens masculinos. Apesar de expô-los conforme as imagens de objeto de desejo veiculadas pela mídia, o comportamento deles em cena contrariava totalmente às normatizações de identificação do gênero masculino na sociedade brasileira. Os muitos momentos em que os personagens falavam palavrões ou apresentavam situações comportamentais transgressoras, expondo condutas sexualizadas, falando de assuntos que confrontavam a hipocrisia social, causavam muitos comentários de repúdio em algumas pessoas “conservadoras” ali presentes.

A meu ver, o ápice dessas reações ocorreu, quando os personagens de dois atores se beijaram em cena. Apesar de estarmos no teatro, de acreditarmos que as pessoas naquela plateia soubessem que o que ocorre no palco é ficção, ao verem dois homens se beijando EM CENA, muitas pessoas protestaram e não se sentiram acanhadas de mostrar o seu descontentamento em presenciarem aquela situação. O que me choca não é o beijo entre dois atores em cena, mas sim, a reação do público pelotense ao reagir dessa forma em pleno 2012! Lembro que, naquele momento, após já estar observando o desassossego do público com todas as quebras de imagens idealizadas de celebridades que o próprio espetáculo desconstroi, da linguagem textual ácida, fiquei ponderando se Pelotas não se chocaria com uma montagem de “A Dama das Camélias” ainda nos dias de hoje. O caso do imaginário pelotense ter se arraigado nos ideias do século XIX merece ser estudado, uma vez que ainda observamos que uma fatia da sociedade desse município se reveste no lustre de um tempo que todas as discussões contemporâneas já superaram.

Em face disso, fico com receio do que pode acontecer com essas pessoas que ainda mantém seus referenciais estéticos nos idos de 1800 ou até mesmo em séculos anteriores, uma vez que essa cidade, poderá vir a receber muitos espetáculos com propostas contemporâneas, com textos longe dos puritanismos e floreios românticos dos grandes salões de recitais. Obviamente, não posso terminar esse texto sem continuar lamentando o fato de não dispormos de nenhum teatro público em funcionamento nessa cidade. Além disso, cada vez que passo pela Av. Bento Gonçalves e vejo o Theatro Avenida ruindo e, quando circulo pelo centro histórico do centro da cidade, vejo o Theatro Sete de Abril com risco de desabar, só desejo que venhamos a ter políticas culturais nessa cidade que propiciem o acesso à cultura para todos os cidadãos pelotenses.

MSc. Vagner Vargas
DRT – Ator – 6606 – Crítico teatral
vagnervarg@yahoo.com.br

Fonte: http://ccetp.blogspot.com.br

Foto: Kelly Schmidt Fotografia