Editor, gestor de conteúdo, fundador do ecult. Redator e pretenso escritor, autor do romance Três contra Todos. Produtor Cultural sempre que possível.
O teatro 7 de Abril, de Pelotas, é um clássico que pode e merece ser visitado com carinho e atenção. Grandes nomes passaram por ali. Portanto, não se furte de subir escadas e explorar corredores. Na casa da ilusão, tudo é permitido.
Silêncio nos bastidores, a ilusão vai zarpar!
Pendurado nos cordames, o eco se balança perigosamente no vazio sobre o palco. Não há atriz aqui, e se estão certas as histórias de fantasmas, almas penadas de atores secundários devem continuar seus ensaios quando a meia noite se espalha fria e implacável. Eles continuam buscando a entonação perfeita, o aplauso desenfreado, a glória. A glória! A glória, essa ingrata de todos os atores, fugaz, escurridiça, infiel. Cruel. Maldita, mesmo. Me debruço sobre a balaustrada que protege o espaço sobre os camarins e que dá acesso visual ao palco e aos holofotes. Escuto: um carro que passa longe, como se a porta do 7 de Abril ficasse há quilômetros; um rumorejar de asas. Um sabor de brisa que não ouço, adivinho, e sombras, muitas sombras.
As cordas que sustentam as coxías, os cenários – agora ausentes – os cortinados, as cordas que fazem o teatro parecer um navio ancorado prestes à zarpar, as cordas desenham linhas na parede, linhas intactas, sombras cinzentas onde eu penso ver o movimento de um aceno. Mas não, é só uma mariposa perdida passando, quase poderia ouví-la, não fosse o silêncio ensurdecedor. Nem todo o passo faz ranger as tábuas, mas as escadas estremecem quando as venço, e a cordoaria balança quando a toco, quase como se pudesse fazê-las falar. No ar, um cheiro seco e mofado. O Tempo, o que devora a glória impiedosamente, passou por aqui.
Os camarins, venci a pouco. Corredores simples, iluminados, a parte real da ilusão servindo de caminho para os camarins clássicos, sem janelas, mas com o espelho de lâmpadas incandecentes. Olhar-se no espelho sob essas luzes é perceber o quanto se pode ser e não ser ao mesmo tempo, o gato de Schrödinger e o príncipe da Dinamarca. Escadas estreitas levam ao segundo andar dos camarins, tão parecido ao primeiro andar quanto dois gêmeos, à excessão de que o de cima tem o corredor mais estreito e o de baixo tem mais luz, tem um pichiche de espelhos de cristal, certamente assombrado pelo olhar de uma estrela decadente, no dia em que a glória a tocou pela última vez.
E antes disso, explorei a platéia, sombria como se lá fora não fosse dia e a temperatura não lembrasse um forno. Depois o palco e por fim as coxías: onde o verdadeiro espetáculo acontece. Tudo acontece nas coxías! Elas são a interface onde realidade e ilusão se tocam, se fudem, se transformam uma na outra. Ah, quem não conhece as coxías de um espetáculo não sabe da sua grandeza! Imagina, adivinha, talvez, mas não a conhece de fato. Porque é nas coxías que atrizes se transformam em donas de casa pacatas, onde ladrões se despem para ser apenas um ator de segunda, onde o diretor sofre, os eletricistas fazem comentários cínicos e os contraregras suam. A bailarina amarra a tortura em forma de sapatilha no pé e pisa no palco transformada numa criatura de sonhos. O mágico faz o último ajuste com a ajudante. O palhaço seca a maquiagem delicamente, antes que escorra. O ator ateu se benze. O músico religioso pragueja pela última vez. E tudo isso, carregado de medo e desejo, e certeza, e dúvida, e coragem, e audácia, e poesia, tudo isso ecoa no teatro até agora, grudado nas cortinas vermelhas, uma umidade pegajosa que é puro pó.
Como todo teatro clássico, o 7 de Abril conecta os bastidores com os corredores por trás dos camarotes, conecção sempre escura, noturna no mais doce dos dias. Ali se ouve a palavra da cena, o sussurro dos que passam, passaram, ainda hão de passar. Ali cheira como em nenhum outro lugar, à inveja e admiração. É o túnel que emerge da ilusão da glória para o saguão de entrada, cujas portas por um instante a gente não reconhece, de tão iluminadas, de tão claras.
Devagarito no más, empurro-as, desejando bom dia ao porteiro. Visita encerrada.
Na praça verde e quente, o sol se derrama, ouro e fogo sobre a cidade que encena seu espetáculo com perfeição todos os dias, os protagonistas de cada drama e comédia passando sem pressa rumo aos seus palcos pessoais.