A praça Piratinino de Almeida é um quarteirão de árvores há duas quadras do hotel em que fiquei hospedada, em Pelotas, encravado diante da Santa Casa de Misericórdia. É sombria e verdusca e tão cheia de vegetais anciãos de porte majestoso que merecia estar melhor cuidada. Assim do jeito que está, grama alta e capim se espraiando ao seu bel prazer, lembra por demais as recomendações para que se tome cuidado. Para um sujeito urbano, qualquer capãozinho de bom ver pode parecer ameaçador.
No centro da praça, misturadas aos troncos e mimetizadas pelas sombras como se fosse parte do bosque, há um grupo de colunas esguias e elegantes. Debaixo delas, uma superfície fresca e pavimentada com pequenas pedras avermelhadas, num tom de barro. Os artistas plásticos tem um lápis de estudo no mesmo tom. Os desenhos que eles fazem com esse material chama-se “sangria”.
E enquanto não a olhamos por baixo, em sua intimidade de sombras e frescor, tudo é encanto.
Mas ali, onde o bosque de colunas se assenta no solo ladrilhado, ali dentro as sombras se assentam, pesadamente. É como uma gruta sem paredes. O teto distante e redondo, azul celeste opaco como um arremedo de céu, é sustentando por uma estrutura radial também de ferro, uma trama de vigas retas, feito a teia de alguma criatura gigantesca. Faz calor, mas há um arrepio que percorre as colunas, se enroscando nelas como um coisa pegajosa e fria, antiga mas sem história e sem memória. Sem consciência. A placa de “proibida a passagem – risco de queda de material” é uma advertência redundante. Esse algo de sombrio debaixo daquelas colunas, essa aragem azinavrada, isso seria o bastante para manter longe quem fosse um pouco esperto, sem neessidade de outra coisa senão de próprio assombro.
Manteria longe, não fosse a escada.
No centro da estrutura de ferro, descendo de suas entranhas sombrias até o chão fresco, está a escada de acesso ao alto da caixa d’água. Provavelmente, ela termina debaixo do baldaquino de ferro e pontas e mil e uma noites. É uma espiral tão sinuosa e suave que torna o ferro de que está feita em algo orgânico, quase macio. A forma é tudo: conjunto de medidas e ângulos e traçados e degraus vazados e geometria e material e ar. A forma da escada é poesia pura. A água deve escorrer por ali em dias de umidade por puro prazer, enrolando-se no corrimão gota a gota, acariciando a sensualidade daquela forma com a deliciada e lenta volúpia das gotas deslizando frias. Puro arrepio: o corpo arqueado de prazer e o dedo da assombração tocando de leve a nuca da gente. A escada se molda os degraus e a balaustrada de ferro vazados acariciando a coluna central da caixa, a coluna mais escura e grossa, ambas maliciosas e sensuais. E a gente quase se rende. Quase obedece ao seu apelo, quase sobe seus degraus até as sombrias entranhas lá em cima.
Blog da escritora e professora de dança, Simone Saueressig
Editor, gestor de conteúdo, fundador do ecult. Redator e pretenso escritor, autor do romance Três contra Todos. Produtor Cultural sempre que possível.