Do lixo ao luxo e ao lixo de novo


Por: Gilda Satte Alam Severi Cardoso (advogada)

Hoje pela manhã, assisti uma reportagem sobre o mercado de luxo no Brasil e descobri que dentro da espécie humana existe uma outra “espécie” formada por pessoas especiais, excepcionais, que merecem um tratamento diferenciado. Pessoas que são atendidas pelos seus irmãos menos afortunados, mas que mesmo assim têm de subir seu padrão físico e intelectual para merecer estar junto dos clientes de luxo, servindo sua comida diferenciada, vendendo seus produtos diferenciados, limpando seus resíduos diferenciados.

Pois esta espécie de luxo vive num mundo apartado onde os demais membros da humanidade, de categoria inferior, sonham em poder ingressar, nem que seja para servir, pois é uma honra servir aos clientes de luxo.

Fiquei pensando sobre o que faz estas pessoas tão especiais a ponto de merecer esse destaque. E mais. O que faz os demais membros da “espécie” comum não serem merecedores de desvelo, de atenção, de carinho. Sim, porque segundo os consultores entrevistados na reportagem acima o humano que serve tem de ser carinhoso e amar muito o que faz.

Pois eu não sei se todos concordarão comigo ou mesmo perceberão o absurdo da situação. Não estou falando do fato de existirem pessoas que tem muito dinheiro (pessoas que sequer vemos circulando por aí) e que vivem num mundo à parte, resguardadas da realidade que não tem interesse em saber ou enxergar. Agora dizer que estas pessoas são especiais e que por isso merecem esse tratamento excepcional, aí é demais para o meu limitado cérebro decodificar.

É como se existissem humanos, mais humanos sendo que esse plus não está relacionado à solidariedade ou à inteligência ou mesmo à qualquer contribuição em prol da humanidade comum onde bilhões carecem do mínimo necessário para sobreviver.

E não. Não é recalque. Nunca desejei fazer parte de um mundo de coisas supérfluas. Gosto de viver bem com conforto e alegria, mas sempre privilegiei outro tipo de bens que não estão propriamente relacionados à posses materiais, até porque, mesmo no extremo luxo temos limites, onde já não existe mais o que ser adquirido. Felizmente já descobri que a felicidade está nas coisas simples e que muitas vezes não são gozadas pelos clientes luxo, por medo.

Também não critico propriamente as pessoas que fazem parte dessa espécie diferenciada, o que me intriga mesmo são os membros da espécie comum que se curvam aos clientes de luxo assumindo o papel de seres menos evoluídos. Me preocupa que os cuidados e atenção não sejam voltados também aos seres comuns que vivem mendigando direitos (e aqui está um outro paradoxo), e que não tem acesso à uma educação de qualidade, numa escola bonita, limpa, com professores felizes e bem remunerados ou a um tratamento de saúde com tecnologia de ponta que permita a cura ou o alívio digno, ou ainda a um transporte público eficiente e confortável. Infelizmente, estes ainda são artigos de luxo.