Por Camila Albrecht
O longa de Gabriel Mascaro, Ventos de Agosto, nos envolve em uma trama ficcional, rara em sua cinematografia, mas também vagueia pelo universo documental, tão apreciado pelo diretor, responsável pelos filmes Um Lugar ao Sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010) e Doméstica (2012). Definitivamente o roteiro e a proposta narrativa enfatizam essa hibridização entre gêneros, forte tendência no cinema contemporâneo brasileiro.
A primeira vista, o filme coloca o espectador em contato com uma humilde vila litorânea de Alagoas, onde ficcionalmente nos apresenta o cotidiano de uma comunidade isolada. Mais especificamente, temos a presença explicitamente moderna de Shirley (interpretada por Dandara de Moraes) fã de punk rock e tatuagem, que precisou abandonar a vida na metrópole para morar no vilarejo alagoano em questão para cuidar da avó doente. Em meio a deslumbrantes imagens naturalistas do interior nordestino, Shirley muitas vezes parece desgostosa como quem vive a contragosto tentando suportar a rotina tediosa daquele lugar, o que mostra a percepção ansiosa das pessoas da cidade frente ao mundo rural. Em outro ponto do filme, surge também como protagonista Jeison que é namorado de Shirley, catador de côcos e parece viver a sombra do pai autoritário. Previamente parece ser um personagem raso, até sua aparição se envolver com reflexões sobre a vida e a morte, a memória e o tempo, proposta pelo filme no momento em que ele encontra um corpo branco e sem vida no meio da mata. Nessa virada, o filme se empenha em retratar questões sociais precárias, como o descaso policial no nordeste e, através de metáforas, aludir aos fantasmas do tempo e às contradições do sujeito moderno.
A narrativa de Ventos de Agosto, ao mesmo tempo em que constrói um olhar realista de retorno a pureza natural da terra, arrebata-nos quando mostra essa pureza já liquidificada, transformada e diluída em um banho de Coca-Cola no corpo carnal de Shirley, no Atlântico, ao som de um punk-rock inglês. Dessa forma, a significação do contemporâneo no longa de Gabriel Mascaro, representada na personagem de Shirley e imbuído em alguns aspectos do roteiro parece criar uma dicotomia bastante aparente entre o contexto rural e urbano, discurso já bastante presente nos filmes do diretor. Porém, ao mesclar estes dois universos tão extremos lança a luz da reflexão o contraste da vida simples com os caprichos da burguesia. Exemplo disso é a cena em que Jeison, dentro de um barco velho, precisa atravessar o rio que separa a vila da cidade com o corpo do morto, enquanto uma balsa com turistas recém-chegados passa ao fundo.
Em dado momento do filme, os moradores da vila precisam lidar com uma presença estranha no local: um pesquisador de ventos alísios, figura que, assim como Shirley, também aparece deslocada na região. O mote para a reflexão documental se dá quando é sabido que a figura deslocada em questão é o próprio diretor Gabriel Mascaro. Desse modo, o que antes se via como narrativa ficcional pode ser percebido como documentário observativo, e também, interativo por conta da presença do diretor em cena. Como personagem ele conversa com os habitantes da região que, propositalmente ou não, são não-atores e parecem valorizar a encenação improvisada. Há uma cena em que a câmera parada captura Shirley e Jeison em um ônibus escolar, enquanto as crianças interagem e olham para a câmera. Desse modo, se nota um desejo oculto do diretor em transmitir um estudo etnológico daquele litoral nordestino produtor de côco.
Ventos de Agosto abre caminhos para diversos debates, tanto sobre seus temas quanto sobre a forma que o diretor escolheu para representá-los. Há uma passagem em que o pesquisador de ventos direciona o gravador em diferentes posições gerando diferentes sons, o que parece aludir ao poder do diretor que, mesmo sem querer, manipula. O símbolo do gravador no filme associado a questão técnica de captar o som, ao mesmo tempo que evidencia uma interferência tecnológica e deslocada daquele universo, retrata uma aproximação de documentarista que capta a ação dos habitantes duma vila de pescadores como quem observa e interfere na própria obra.
Seja ficcional, seja documental, o longa de Gabriel Mascaro nos imerge em um filme de pura excelência artística, mas difícil de engolir com seus planos contemplativos e sensitivos, próprio de uma massa de festival. Recebeu Menção Honrosa no Festival de Locarno, na Suíça, melhor fotografia e melhor atriz por Dandara de Moraes no Festival de Brasília, além de outros prêmios. A elegância na forma de como é concebido parece claramente admitir esse agrupamento de gêneros, fruto de uma nova era na cinematografia brasileira.
Os próprios títulos exibidos no primeiro dia da Mostra Frisson – Panorama de Cinema de Pelotas também são, impreterivelmente, representantes dessa geração audiovisual de inovação da linguagem. São eles: História Natural, de Júlio Cavani e Castillo y el Armado, animação de Pedro Harres que, assim como Ventos de Agosto, dialogam com a questão da dominação da natureza pelo homem e outros aspectos, através de um audiovisual que prima pelo sensorial e dá conta.
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