Frisson: Uma ficção dos amputados ou quando a fábula estatal alcança o osso


Foto: Divulgação

Por Camila Albrecht

O filme Branco Sai, Preto Fica marca uma aproximação ética mas, antes de tudo, corporal com o cotidiano de um povo submisso e sofrido. Morador da Ceilândia, periferia de Brasília, o diretor Adirley Queirós adentra o espectador em um filme-explosão, que escancara uma vida de quase cárcere própria de uma massa negra que sofre com a exclusão, o racismo e, especificamente, com a violência policial no Brasil.

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Tem como ponto de partida uma história real e traumática: a invasão de um baile black na Ceilândia, ocorrida na década de 80, por policiais racistas e territorialistas da Capital Federal. Enquanto um cavalo da polícia passa por cima de Chokito, arrancando-lhe uma das pernas, tiros, correria e consumação imobilizam as pernas de Marquim. O filme arrebata-nos em um choque de realidade quando um deles narra “Foi muito estranho, acordei e não conseguia mais andar”. Dessa forma, o tom documental abre caminhos para uma ficção de amputados. Evidentemente legítima, já que usa de atores da própria periferia, onde a fonte de representação é feita por quem sofre da impotência física e moral.

Misto de ficção e documentário, o filme trabalha também com o gênero da ficção científica, com uma certa inventividade lúdica na forma de concebê-lo, ainda que estritamente real em seu subtexto de denúncia social. Assim, o filme vagueia entre 3 tempos estruturais: o passado, retratado pelas memórias do acontecimento repressivo, o presente amputado e o futuro fabulatório que alude a uma esperança de ressarcimento do Estado com o povo marginalizado.

O futuro aqui é representando por um terceiro personagem: Dimas Cravalanças – interpretado por Dilma Durães –, figura que aparece na forma de uma entidade ou um cobrador de dívidas. Ele precisa recolher provas consistentes contra o governo brasileiro de 2073 pelos atos de violência contra populações periféricas e que, no contexto atual do filme, ameaça o povo negro através de uma vanguarda cristã. Ainda na narrativa ficcional do filme os moradores das cidades-satélite precisam de passaporte para entrar no Distrito Federal, retratando uma exclusão que é mascarada pela elite de Brasília. Assim, a máquina do tempo de Cravalanças é um contâiner que balança de um lado para o outro sem que pareça sair do lugar, como uma massa marginalizada que grita sem ter voz.

Desde seu filme anterior A Cidade é uma Só (2011), Adirley Queirós mostra que a opressão social se forma, sobretudo, a partir dos espaços e vice-versa. A própria paisagem da Ceilândia é uma espécie de cárcere, com seus descampados, ruas de terra e fachadas irregulares. A locomoção dos personagens pelos espaços labirínticos causa ao espectador certo desconforto. Exemplo aparente disso é a longa e sofrida cena em que é mostrada a rotina de Marquim ao sair de seu carro, montar sua cadeira de rodas, mover-se até ela e ativar o elevador com o qual entra em casa. Da mesma forma, Shokito é visto frequentemente subindo, descendo escadas e transitando pelos espaços com certa dificuldade. O ritmo lento ao mesmo tempo que acompanha as limitações dos personagens em seus aparelhos tecnológicos, serve como metáfora dessa prisão também arquitetural da periferia, fruto de um espaço claramente apartado de seu todo.

É visto que um cinema autoral, representativo e de forte denúncia social surge aqui como um grito de socorro e, antes de tudo, vontade de mudança. Dessa forma Branco Sai, Preto Fica se mantém no limiar entre o inovador, raro pela forma e autêntico na representação, e o emblemático, quase como um Cinema Novo de novo. Martin, em sua cadeira de rodas, no que parece uma rádio pirata recria o diálogo na noite de repressão do baile Quarentão entre ele mesmo e o policial autoritário, exatamente como o cangaceiro Corisco narra a morte de lampião em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha.

“Se você conseguir impedir a grande explosão será devidamente recompensado e terá autorização para voltar. Não há tempo, Cravalanças! Corra!” Nos minutos finais do filme Cravalanças grita contra o progresso, os bancos, a violência policial e a grande estrutura enquanto aponta a arma em direção ao espectador e atira. A bomba em questão parece também querer representar uma metalinguagem ao próprio filme, com uma superestrutura mecanizada que mescla imagens e músicas, misturando a Dança do Jumento, o forró, o rap e o funk. Claramente buscando um desejo de reconhecimento e ressarcimento de uma cultura marginalizada de periferia. Porém em meio aos escombros de uma sociedade pós-apocalíptica, Dimas se perde em meio ao caos, Chokito retira a perna e rememora seu casamento, Marquim coloca fogo em seu sofá, esconderijo de seus discos, planos e memórias. Dessa forma, o filme-explosão traz um final que não é feliz, aludindo a não reparação pelo Estado, ao descaso e a uma ferida ainda aberta.

Quando a fábula da luta estatal alcança a moral da mesma forma que alcança os ossos e, não teme em arrancar os membros, surge a ficção dos amputados. Nesse contexto, a bomba sugere uma reflexão sobre a incoerência da luta pelo domínio e pelo controle dos corpos como o principal desejo do Estado, criando um universo de submissos. Enquanto vários cineastas nacionais embarcam em um cinema comercial de ideias manipuladas e rasas, Adirley Queirós surge com um filme político. Aqui o cinema é uma arte não estrutural, capaz de representar um espaço fidedignamente fora das técnicas de coerção do Estado e dos poderes institucionais.

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