Comentários sobre O Homem Duplicado (2014) | 24 Frames de Literatura


Por: Carlos Ossanes e Cássia Benemann da Silva

O caos é uma ordem por decifrar – Livro dos Contrários

Foto: Divulgação

O Homem Duplicado (em inglês, Enemy, 2014) é o tipo de filme não faz parte do circuito comercial de cinema, que afasta os espectadores e causa impressões até mesmo negativas. “Confuso”, “sem sentido”, “chato”; é só uma obra fugir do convencional que as críticas se tornam pouco amistosas e voltadas para esses adjetivos nada significativos. Para aqueles que procuram ver o outro lado da moeda e tentam entender o porquê de a narrativa ter sido construída como foi, O Homem Duplicado é um prato cheio de boas intenções. Inspirado na obra homônima de José Saramago (2002), o longa tem direção do canadense Denis Villeneuve e roteiro por Javier Gullón. Sua trama gira em torno de Adam Bells e Anthony St. Claire (ambos interpretados por Jake Gyllenhaal), a priori homens idênticos, que acabam encontrando-se em uma realidade unificada, com suas identidades distorcidas.

O resultado da liberdade que se teve ao criar o filme (sabe-se tratar de um pedido do próprio autor: a obra deveria ser uma adaptação livre), foi a recriação de vazios e pontos de indeterminação da obra do Saramago, fazendo-se a manutenção e reciclagem de nós-chave da narrativa, como lacunas para várias interpretações a respeito da duplicidade da personagem e a boa utilização de todos elementos simbólicos, como a aranha, sua teia e os movimentos repetitivos. O apego a detalhes pequenos, como o nome das personagens (inicialmente, Tertuliano Máximo Afonso e Daniel Santa-Clara), tornam-se completamente irrelevantes para o contexto geral da adaptação, uma vez que as ressalvas positivas dessa leitura vão, justamente, para o fluído uso dos elementos da obra literária de Saramago e sua disposição, de maneira a criar uma ambientação apegada em manter os questionamentos, não em decifrá-los.

Seus primeiros acontecimentos não são interessantes, não prendem a atenção do espectador, mas a intencionalidade dessa introdução fica evidente ao decorrer da narrativa: a apresentação cíclica da vida de Adam, a reprodução de seus atos, da fala de sua aula; a prisão. O longa ganha pontos ao oferecer uma tenacidade técnica/interpretativa muito constante e processual. Essa tenacidade se percebe, principalmente, num dos pontos altos da obra, na interpretação de Jake Gyllenhaal, o qual ainda que não seja o mais complexo dos atores, se esforça para dar vivacidade à história. Sem sombra de dúvidas, a escolha do casting foi assertiva, fazendo o espectador atentar para a respiração acelerada de Adam e para o olhar frio de Anthony.

Com um clima de suspense que não tem (e acerta por não ter) compromisso em se justificar, O Homem Duplicado é uma obra cinematográfica que gera certo esforço intelectual, sendo na verdade instigante ao invés de frustrante. Os pontos de interrogação que se formam ao decorrer do filme devem ser vistos como um desafio à desmistificação do non-sense, tornando-os apenas o ponto de partida para novas leituras e interpretações. A criação de uma cronologia narrativa fragmentada e caótica, aliada à divisão binária de Adam (seu lado catártico, identificado em Anthony), fazem do longa uma produção audaciosa, apesar das falhas. O caos do filme não espera que seja compreendido, aceito ou decifrado.