Não há o que não haja, como foi dito certa feita em frente ao pórtico da Academia Pelotense de Letras. Estamos chegando no final de 2015 e o cenário cultural da cidade nunca esteve tão ativo. Com uma série de atividades culturais que preenchem o calendário de boa parcela da população local. Atividades que ocorrem ao ar livre – que tanto podem ser apoiadas financeiramente pelo poder público ou pela iniciativa privada ou por nenhuma das duas. Atividades em prédios históricos e públicos, com um lógica de financiamento semelhante. Atividades estritamente privadas, como shows e espetáculos em teatros, pavilhões de centros comerciais, ginásios, galerias de arte, cinemas e casas noturnas. Uma trama complexa e que faz parte do que é convencionado como economia da cultura.
É uma cadeia complexa e mal começa-se a tentar explicar e abrir ela cartesianamente, já começamos a sofrer taquicardia e enxaqueca, mas vou tentar esboçar a minha visão sobre esse cenário, baseada numa imagem que postei pela minha página do facebook e que me fez ter um questionamento sobre o panorama atual e a sórdida relação entre os agentes que compõem esse cenário.
Ao longo da minha caminhada, tive a oportunidade de atuar em diversas atividades e funções, dentro dessa ‘indústria do entretenimento’ ou ‘industria cultural’ ou simplesmente vida de músico. Já fui músico, roadie, produtor executivo, produtor artístico, produtor fonográfico, assistente de produção, técnico de som, técnico de luz, copeiro, faxineiro, tesoureiro, ator, diretor, colador de cartaz, entregador de panfleto e bilheteiro. Acredito e quero ter a oportunidade de trabalhar em mais coisas dessa área e sempre fiz isso com gosto mas o questionamento sobre a realidade da carreira profissional que resolvi trilhar, sempre foi um fator presente na minha existência e talvez por isso eu faça isso com tanto amor e dedicação.
Um simples raciocínio, faz qualquer ser humano perceber que toda e qualquer atividade realizada dentro do sistema que vivemos, envolve trocas e principalmente trocas comerciais. No cenário cultural isso também acontece, mas com uma lógica um pouco diferente. As trocas podem ser tanto no âmbito do capital simbólico – reconhecimento, formação de público, eventos filantrópicos e comunhão – como de capital material real. Dentro das áreas elencadas ao longo desse texto, vou me debruçar sobre a sórdida relação que ocorre em eventos realizados em casas noturnas.
Dentro dessa paisagem encantadora que é A Noite, destaco três protagonistas que ao longo da história convivem de maneira tempestuosa: o músico, o empresário e o público.
Não é novidade que desde que o mundo é mundo, o músico vai reclamar do bar e o bar reclamar do músico, ou que o músico reclama do público que reclama do músico e do preço da cerveja ou do atendimento, ou da lotação absurda ou da falta de gente ou do preço do couvert. Entre esse triângulo a relação mais intensa é a que se dá entre o empresário e o músico. A relação entre essas duas figuras fica entre uma relação patronal – onde o empresário está colocado em uma hierarquia superior – e uma relação cooperacional – onde músico e empresário fazem uma parceria e que o ganho dos dois está condicionado à excelência do serviço prestado pelos dois, ou seja, pela presença do público.
Na relação patronal, o músico presta o serviço baseado num valor fixo de remuneração, previamente acertado com o empresário e com tempo de apresentação determinado. Na relação de cooperação, o músico trabalha sem tempo estipulado e seus ganhos são oriundos da bilheteria – seja via ingresso físico ou couvert. Entretanto, essas duas relações só são possíveis porque existe a figura do público que dentro dessa cadeia, representa o êxito ou o fracasso do empreendimento realizado.
Dentro desse recorte, onde constatamos essa complexa relação de trocas, é preciso considerar mais uma série de itens importantíssimos e que resultam na frequente instabilidade dentro dessas relações. O empresário carrega em suas costas, um investimento pesadíssimo que compreende a estrutura do bar – como aluguel, sistema de sonorização/iluminação, etc. – luz, funcionários, encargos trabalhistas, fornecedores, estoque, limpeza e segurança. O músico – além da velha história do estudo e horas dedicas ao aprendizado de um instrumento ou dos extensos ensaios – arca ainda com o valor do instrumento, dos acessórios – cordas, cabos, bags e afins – logística, alimentação, além do seu pró-labore. Obviamente ambos sofrendo a pesada realidade fiscal brasileira. É uma atividade custosa, como qualquer pessoa que pense o mínimo sobre a sociedade em que vive pode per. Dentro dessa complexa relação de interesses, entre o empresário e o músico, há também humanidade, como carinho, respeito e consideração, de ambas as partes para que o trabalho siga sendo feito, porque assim como é importante para um músico da noite ter uma casa bacana, com uma estrutura de som adequada, com um tratamento digno e respeito necessários para que seu trabalho seja realizado, também é importante para o empresário que o músico que ele está contratando ou que esteja empreendendo junto com ele, seja um profissional eficiente e um artista em excelência e aí é onde geralmente mora o conflito. Outro dia, me deparei com uma placa de um bar aqui da cidade, onde destacava a apresentação e os valores de couver e de uma promoção de cerveja artesanal. É uma imagem curiosa e paradoxal mas que representa um pouco do que eu entendo como a crise que estamos passando.
Obviamente há uma crise econômica que estampa os noticiários e pauta as conversas do dia-a-dia e que reverbera prontamente no chamado cenário cultural. Tanto empresas privadas, ou do setor público, reduzem ou extinguem as verbas destinadas para a setor cultural, mas aumentam o seus orçamentos em outras áreas de investimento, apesar da crise. O público que consome o produto música de bar também acaba segurando um pouco a mão na hora de pagar um couvert, mas estranhamente parece não refletir sobre isso ao desembolsar quase três vezes mais para tomar 600ml de cerveja ou dez vezes mais para outros tipos de recreação que ainda são proibidos.
Colocando de uma forma demonstrativa: Supondo que o couvert ou ingresso cobrado tenha o valor de R$10 e a garrafa de uma cerveja extra de R$10 e o valor de uma cerveja artesanal de R$30. O público que está presente naquele momento, paga o mesmo valor por retornos diferentes. A pessoa paga R$10 de couver artístico ou ingresso e desfruta de 3hs ou mais de música, enquanto paga, no mínimo, a mesma quantia para 30min de desfrutação do sabor, temperatura e sensação de tomar uma cerveja.
How does it feel?
Não é raro, em praticamente 100% dos eventos que participo, haver um bom número de oportunistas de ocasião, pedindo isenção de couvert ou algum desconto, pelo simples fato de ter saído com pouca grana e ter só para tomar uma ou outra cerveja. Isso acontece sempre, seja com conhecidos, desconhecidos ou até mesmo, o que é mais grave, por membros da mesma fauna cultural, como dono de casas, produtores e músicos. Inclusive, há alguns meses atrás, passei por uma situação lamentável, constrangedora onde um ex-Conselheiro Municipal de Cultura tentou barganhar comigo alguns ingressos pela metade do valor, com a prerrogativa de que iria gastar muito bem no bar e que por isso merecia esse desconto. Obviamente eu não cedi aos apelos desse sujeito e o mesmo foi-se embora do local, levando seus quatro amigos para um outro bar. Agora vejam bem, eu estou falando de um cidadão que foi eleito para ser Conselheiro Municipal de Cultura de Pelotas. Supostamente poderia ser um sujeito consciente da cadeia da ecnomia da cultura e que fizesse um questionamento sobre o valor do produto cultural dentro da sociedade. Supostamente…
Acho que conforme tantas pautas avançam, nesse mundo contemporâneo e cheio de opiniões, é importante que exista uma discussão sobre essa relação que afeta tanta gente, seja ele empresário, músico ou público. É necessária uma tomada de consciência para que esta realidade possa mudar e pra que existam mais casas legais para se frequentar, mais músicos fenomenais para se apreciar e mais público interessado em coisas boas e genuínas. É visto que assim como há um público que não compreende que seja necessário o pagemento de couvert, há também músicos que não valorizam sua escolha profissional e vão até o local do show pra simplesmente bater ponto, pegar a meia duzia de reais e ir embora; assim como há empresário que burla contas, desaparece com comandas ou que simplesmente não repassa o valor justo pelo trabalho prestado. Também há aqueles. Esses não duram muito tempo no mercado e logo são engolidos e mudam de ramo.
Apesar da crise, tá tudo bem, nesse mundo onde a cerveja vale mais do que uma manifestação artística, mas tá esquisito.
Texto: Alex Vaz
Editor, gestor de conteúdo, fundador do ecult. Redator e pretenso escritor, autor do romance Três contra Todos. Produtor Cultural sempre que possível.