Cheguei ao bar e disse: “Cara, tens que ouvir essa que li hoje”. A resposta foi sumária: “Não aguento mais tu falando daquele tal de Millôr”. Esse diálogo aconteceu lá pelo início dos meus vinte anos, quando vivia espantado com cada detalhe que eu conhecia da obra do Millôr Fernandes. A essa altura do campeonato, eu já era um leitor mediano, e estava quase conseguindo entender o horóscopo do Diário da Manhã. O Millôr foi o divisor de águas na cultura brasileira, um Moisés de tanga, que abusou de temas sérios para fazer bom humor.
Esse tal de Millôr que eu tanto repetia, se tu deres um google, é possível ler algumas de suas frases: “O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde”; “As pessoas que falam muito, mentem sempre, porque acabam esgotando seu estoque de verdades”; “Quem mata o tempo não é um assassino. É um suicida” e “Sim, do mundo não se leva nada. Mas é formidável ter uma porção de coisas a dizer adeus”. Reflexões sem dor, sempre com uma antimoral, procurando ironizar a certeza das ideias.
O Luiz Fernando Veríssimo contou uma história do Millôr que me impressionou. Convidado para discursar na Jornada de Literatura de Passo Fundo, geralmente o Millôr falava de improviso, mas dessa vez ele leu um texto. O texto era um hino à democracia, aos diretos civis, à liberdade…. É claro que foi aplaudido com entusiasmo pelo público, uma consagração. Quando terminaram os aplausos, ele disse: “Eu acabo de ler o discurso de posse do general Médici”.
Esse mês de agosto marcou o centenário do pensador, que criou em sua carreira cartum, charge, poesia, teatro, pintura, com humor refinado. Um homem de impressa, Millôr foi destaque nas revistas: O Cruzeiro, Pif-Paf, Veja, IstoÉ; nos jornais: O Pasquim e Jornal do Brasil. Em entrevistas era possível ouvi-lo definir-se: “Sou pura e simplesmente um jornalista”.
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Jornalista.
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