
Antes mesmo de entrar na Livraria & Sebo Montecristo, você tem contato com os livros. Isso porque a vitrine de vidro ocupa toda a fachada, deixando em evidência as capas que saltam aos olhos. Na vitrine, os livros chamam bastante atenção por estarem acomodados de forma individual, cada um em seu suporte, sem disputar espaço, expostos como se fossem o símbolo de um deus sagrado que, com um pouquinho de imaginação, poderíamos dizer que é o Deus das Palavras.
Tive esse devaneio numa quarta-feira de fevereiro, quando estava passeando com minha namorada e paramos em frente à livraria. Ao entrarmos, fomos incorporados ao ambiente com um cheiro forte, efeito da mistura de papel envelhecido, pó e umidade. Na organização do acervo, as prateleiras são baixas e confortáveis. Apenas na parede lateral há estantes com altura acima dos ombros.
À esquerda de quem entra, fica uma escrivaninha com tampo amplo, onde estava sentado o livreiro José Oscar. Ele trabalhava em alguns livros, observando com atenção a capa, abrindo as primeiras folhas e anotando as informações num notebook de cor vermelha. Peguei da estante – literatura estrangeira – um livro da Elena Ferrante, estava iniciando o “teste da primeira frase’’ quando adentrou um cliente e perguntou para o livreiro:
- Filme de terror, é ali à esquerda?
- Sim, tem alguma coisa ali em VHS, Blu-ray e DVDs – respondeu o livreiro, apontando com uma caneta.
O cliente era um senhor com cabelo apenas nas laterais e na parte de trás da cabeça, do estilo que, no bar com os amigos, costumamos ironizar como o “careca cabelulo’’. Ele vestia sandálias de couro, bermuda com bolsos laterais e camiseta cinza de algodão. Realmente, há uma boa quantidade de DVDs na estante, e o senhor lia sem pressa as sinopses no verso dos encartes. Próximo à estante dos DVDs, encontrei uma pilha de revistas Piauí, quase todas das primeiras edições, incluindo o número _15, de dezembro de 2007, que traz na capa um desenho do cartunista Jaguar, na qual um Papai Noel, após ser assaltado, com expressão indignada, está dizendo no balão: “Tô sem saco pro Natal!”. Um achado interessantíssimo, no entanto, como eu iria seguir o passeio com minha namorada, resolvi que voltaria no dia seguinte para folhear com calma as revistas.
Aconteceu que, nesse mesmo dia, quando já estava em casa lendo a Folha de S.Paulo no celular, me deparei com uma série de reportagens sobre sebos em várias regiões do Brasil. A série iniciou em decorrência do falecimento do livreiro Messias Antônio Coelho (1942-2025), fundador do Sebo Messias, um dos mais tradicionais da capital paulista, com 55 anos de existência. Logo, pensei que, em Pelotas, também há uma tradição de sebos que persistem com essa cultura de vender livros de segunda mão e, vamos pensar positivo, expandindo educação e conhecimento.

No dia seguinte, além da intenção de resgatar as revistas Piauí, voltei disposto a conhecer um pouco mais sobre a trajetória do sebo Montecristo. Era início da tarde quando entrei na loja, e não havia ninguém na parte principal do acervo. Através de um corredor, enxerguei o livreiro Júlio do Anjos na peça do fundo, embrulhando livros em envelopes de correio. Quando o livreiro voltou para a mesa de atendimento, puxei um mochinho, sentei-me na frente dele e comecei a puxar papo:
Lucian Brum: Estive aqui ontem e conversei rapidamente com o José Oscar. Ele mencionou que o sebo tem 15 anos.
Júlio dos Anjos: Sim, a gente abriu em novembro de 2010. Vai fazer 15 anos neste novembro de 2025, já é um tempinho considerável.
Lucian Brum: Quando vocês abriram, no andar de cima ainda funcionava a escola de desenho do JA, certo?
Júlio dos Anjos: Isso, a escola de desenho era do meu pai. A gente fez o prédio exatamente para abrigar as duas coisas: a escola de desenho em cima e o sebo embaixo. Meu pai está com 87 anos agora. Na época da pandemia, ele já era bem velhinho e, com toda aquela questão dos cuidados sanitários, a escola foi forçada a encerrar as atividades. Foram 40 anos de funcionamento.
Lucian Brum: Tu comentaste que és filho do JA, um desenhista com uma forte relação com os livros. Tu tens interesse por livros desde a infância? A ideia de abrir o sebo foi tua?
Júlio dos Anjos: Minha relação com livros vem desde criança, porque minha mãe sempre leu muito. Ela sempre nos estimulou, a mim e à minha irmã, a ter livros e ler. Havia muitos livros lá em casa. Fui criado vendo as pessoas lerem e acabei adquirindo o hábito. Leitura é um hábito que a gente adquire e, depois, não consegue mais parar. Sempre tive muito apreço, gosto muito de ler, mas a ideia de abrir o sebo surgiu por causa do José Oscar. O Oscar é amigo da família. Foi ele quem teve a intenção, a ideia de abrir o sebo. Nós nos juntamos em sociedade para construir um prédio que pudesse abrigar as duas coisas: a escola e o sebo.
Lucian Brum: Então vocês dois são sócios?
Júlio dos Anjos: Na verdade, sou o gerente. O Oscar é sócio junto com a minha mãe.
Lucian Brum: Os clientes da livraria são, em sua maioria, mais jovens ou mais velhos?
Júlio dos Anjos: Vêm pessoas de todas as idades, mas existem alguns nichos. Meninas e mulheres gostam muito de mangá, por exemplo. Não que os homens também não gostem, mas é um tema que percebo atrair mais o público feminino. Os HQs e gibis têm procura por pessoas de todas as idades, desde o cara com uns 50 anos, colecionador, que começou a ler na infância, até os jovens, que compram bastante, empolgados em começar uma coleção. Nos livros, o público mais jovem normalmente procura alguns autores específicos. E existe um público cativo, que frequenta o sebo há anos e se interessa em manusear e procurar os livros nas estantes. Então, varia muito, não dá para cravar.
Lucian Brum: O sebo foi aberto por pessoas que realmente gostam de estar no meio dos livros. Hoje, quando entrei aqui, vi que tu estavas embrulhando alguns livros que, provavelmente, foram vendidos pela internet. O comércio eletrônico tem ajudado na manutenção da livraria?
Júlio dos Anjos: Não é que ele ajude, ele sustenta. Hoje em dia, não tem como se manter aberto sem as vendas online. Simples, direto, é isso aí. Quer dizer, a livraria aberta aqui está muito boa, é muito legal estar no meio dos livros e receber as pessoas. É interessante também para renovar o acervo, porque muitas pessoas nos procuram para vender e trocar objetos. Mas a venda física, de porta, não sustenta. De forma online, a gente vende para o Brasil inteiro e para o exterior também. Então, nosso acervo está todo online. Hoje em dia tem que ser assim, senão não funciona.
Lucian Brum: Há algum livro especial que você lembra de ter chegado aqui no sebo?
Júlio dos Anjos: Temos uma sessão de livros raros. Inclusive, esses dias, um amigo nosso trouxe uns livros do século dezenove para negociar. Temos também um livro de fotos, um álbum da Exposição Universal de Paris, de 1889, na inauguração da Torre Eiffel. Um baita livrão, cheio de fotografias maravilhosas. Já tivemos também a primeira edição em português de Dom Quixote, de 1876. Sempre aparecem algumas coisas especiais, mas são peças difíceis de vender, e o interesse nelas é de um público muito específico.
Lucian Brum: E quanto ao nome da livraria, é inspirado no romance de Alexandre Dumas?
Júlio dos Anjos: Sim, sim, o nome foi escolhido pelo Oscar. Ele gosta muito de ler Alexandre Dumas e quis colocar o nome de Monte Cristo. É engraçado que, em seguida que abrimos, pelo fato de usarmos o nome “Monte Cristo”, algumas pessoas achavam que era uma livraria religiosa. Se tu olhares aquele logo ali, no adesivo da porta, é diferente do logo que temos hoje na fachada. A gente acabou mudando a grafia e colocou o nome em uma palavra só: “Montecristo”. Não vou dizer que tenha diminuído muito a confusão, mas amenizou. E a gente sempre coloca o complemento em todas as redes sociais: “livros de todos os gêneros”, para as pessoas não acharem que é uma livraria com mote religioso.
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O Júlio dos Anjos me contou mais algumas coisas, mas, depois dessa resposta, fiquei rindo comigo mesmo. Pois nunca havia me ocorrido dar à livraria essa característica cristã, não apenas por conhecer o romance de Alexandre Dumas, e sim porque guardo a lembrança da primeira vez que entrei na Montecristo e puxei da prateleira o livro Manual do Sexo Manual, do grupo de humor Casseta & Planeta.
Entretanto, meus amigos, para finalizar essa prosa com vocês, preciso apontar o personagem que é a joia da coroa, a cereja do bolo, o charme que seduz os amantes de literatura a admirarem o lugar. Esse personagem é um gato, sim, um gatinho malhado que, segundo o Júlio do Anjos, foi adotado pela livraria há 12 anos. Na hora de dar um nome para o felino, o José Oscar não teve dúvidas e o chamou de “Conde”. Assim, o gatinho se tornou o Conde de Monte Cristo.
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Jornalista.
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