O novo livro do Rafael Sica é tão Horroroso que é difícil parar de ler


Em Estive em Horroroso em Lembrei de Você, Rafael Sica construiu uma cidade para o leitor refletir sobre a relação desequilibrada entre as pessoas e o ambiente onde elas vivem. Imagem: divulgação.

No final do ano passado, estava passeando no Shopping Pelotas com minha namorada e entramos na Loja do Bem para ver se havia algum livro legal na Geloteca. Ao abrir a porta do congelador, encontrei, de primeira, um livro do Rafael Sica. Na verdade, era o catálogo de uma exposição realizada entre 23 de janeiro e 24 de março de 2019, na Caixa Cultural, em Curitiba. Não é tão surpreendente ter encontrado um material do Sica ofertado em praça pública. Pelas minhas contas, Estive em Horroroso e Lembrei de Você (Quadrinhos na Cia) é seu décimo segundo livro publicado. O lançamento oficial está marcado para o dia 5 de abril, na Livraria Eiffel, em São Paulo.

Estive em Horroroso e Lembrei de Você é um livro provocador. As obras de Rafael Sica costumam mostrar, em cenas urbanas, uma visão crítica da sociedade. Seu desenho, recheado de detalhes, apresenta com sutileza o comportamento humano, ora com humor refinado, ora com motivos melancólicos. No entanto, nesse novo livro, a cidade deixou de ser apenas cenário e virou esse personagem de nome inquietante: Horroroso.

“O município de Horroroso caminha para o futuro sem tirar os pés do passado”, diz a frase escrita no texto de divulgação, assinado pela Secretaria Municipal de Turismo. Sim, Horroroso tem órgãos públicos, assim como um brasão, um mapa geográfico e todas as organizações sociais de uma cidade normal. Mas Horroroso é uma cidade normal? E onde fica? Segundo o autor:

“Muitas vezes, andando pelas ruas, me deparo com situações que são exatamente como as imagens de Horroroso: cenas de destruição estética e moral. Horroroso tem uma desconexão com qualquer cidade e, ao mesmo tempo, pode ser qualquer uma”.

Acima de tudo, por meio de um traço fino, Sica consegue transportar o leitor para dentro do desenho. Não há diálogos nas cenas; as emoções são transmitidas de forma direta e, como disse o autor, os acontecimentos têm potencial para ocorrer em qualquer cidade, de qualquer país do mundo. Com isso, é possível enxergar o trabalho do desenhista transcendendo o tempo e a cultura, apresentando características de uma obra universal.

Quando iniciei a leitura de Estive em Horroroso e Lembrei de Você, não consegui largar até chegar ao fim. Entre um desenho e outro, me vinha à lembrança o livro Os Meninos da Rua Paulo, do húngaro Ferenc Molnár. Esse gatilho surgiu principalmente na cena em que aparecem duas crianças pegando rabeira em um ônibus. A partir desse exemplo, podemos perceber que, para construir histórias com tamanha dimensão, em algum momento deve ter despertado no autor um interesse de expressão irreversível. No caso de Sica, o entusiasmo pelo desenho impresso aconteceu através de um jornal…

Ainda imberbe e com espinhas no rosto, o adolescente Rafael Sica se dirigiu ao Sindicato dos Bancários de Pelotas. Ele estava indo receber o cachê pela ilustração que havia feito para o jornal do sindicato. Ao entrar na sala onde trabalhava o tesoureiro da instituição, deparou-se com pilhas de jornais, todos com seu desenho impresso na capa. Foi nesse momento que teve uma compreensão súbita e refletiu: “Nossa, fascinante. É o meu desenho replicado – é isso que eu quero fazer’’.

Brasão do município. Imagem: divulgação

Encontrei Rafael Sica em uma manhã ensolarada na praia do Laranjal. Apesar de o mês de março ter sido extremamente quente, algo no ar dizia que o verão havia passado e estávamos dando boas-vindas ao outono. Sentamos no cordão da calçada, na esquina das avenidas Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Usando um neologismo humorístico, o artista comentou que estávamos em frente ao prédio do “Horroroso Praia Clube”. Da mesma forma, quando passou um ônibus, nomeou a empresa de “Horroroso Transportes”. A partir do livro, o artista construiu uma linguagem em que Horroroso está sempre em mise-en-scène, sendo construído permanentemente.

O artista começou a desenhar na infância e guarda uma lembrança significativa do período. Em uma visita ao local de trabalho da mãe, encontrou-a desenhando. “Ela tinha uma mesa cheia de canetas, e aquilo era o seu trabalho. Imagina para uma criança, eu fiquei fascinado’’, disse o artista. Sua mãe trabalhava como estilista, desenhando roupas em uma tradicional loja de fazendas chamada A Favorita. Quando Sica chegou à adolescência, persistia o que ele chamou de “vontade pela linguagem”. Porém, seu estímulo inspirador surgiu quando ganhou algumas revistas Geraldão e Chiclete com Banana: “Foi tipo uma bomba atômica na mão de um moleque de 13 anos’’.

Essa bomba explodiu em ideias e o fez compreender que existia um certo “lado B’’ na produção de quadrinhos, pois nunca despertaram seu interesse os gibis de Maurício de Souza ou Walt Disney, por exemplo. Em Pelotas, as referências profissionais eram André Macedo (desenhista do extinto Diário Popular e criador do Libório) e Renato Canini (ilustrador do Zé Carioca). Sica desejava mais informação e, onde a encontrou, não poderia ter um nome mais sugestivo: Sebo Zé Carioca.

No Sebo Zé Carioca, Sica tomou conhecimento da produção de quadrinhos de humor do Brasil: “Ali escorria o suco do quadrinho nacional produzido dos anos 90 pra trás. Puxava uma caixa e ficava ali eternamente sentado, folheando aquele monte de histórias, levando socos e mais socos de mofo e talento na cara’’, escreveu o artista em uma publicação dedicada ao sebo no Instagram. Esse suco era espremido das revistas Geraldão, Animal, Dum-Dum, Los Três Amigos, entre otras cositas más.

Tomado por essas referências, dá para assimilar por que seu primeiro livro se chama Ordinário (Quadrinhos na Cia). Mesmo assim, o artista revelou que, quando estava em formação, procurando criar um estilo, o que mais buscou nas revistas foi entender a linguagem. O discurso do seu desenho sempre trouxe influências de suas andanças pelas cidades, de algum filme que o tivesse afetado, de algum livro que tivesse lido: “​​Acho que é importante beber de outras fontes para não se fechar. Eu sempre quis que meu desenho fosse para outros caminhos, que não ficasse só essa coisa nerd dos quadrinhos’’.

É fácil ver que, ao longo dos seus doze livros, Sica construiu e desconstruiu os formatos de narrativa. Suas tirinhas em Ordinário, por exemplo, já mostravam a liberdade do seu estilo. Entretanto, um episódio fundamental em sua carreira aconteceu quando ele ainda estava em Pelotas. André Macedo organizou um evento que homenagearia Renato Canini. Como Canini era conhecido nacionalmente, desenhistas de outras cidades compareceram, entre eles estava o Adão Iturrusgarai. Após trocarem ideias e compartilharem alguns desenhos, Adão incentivou o Sica a procurar trabalho na cidade onde estavam as grandes editoras e os grandes jornais, ou seja, São Paulo. Realmente motivado pelo trabalho que havia conhecido, Adão compartilhou informações de uma rede de amigos e uma série de contatos profissionais para ajudá-lo a se manter até que São Paulo o descobrisse. Ou que Sica reinventasse o quadrinho brasileiro – o que viesse primeiro.

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Confira alguns desenhos de Estive em Horroroso e Lembrei de Você:

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