“Eu desenho desde sempre’’ – A trajetória artística de Théo Gomes 


Exposição 'Théo Gomes na Otroporto' está aberta para visitação de 02 a 20/12 - Foto: Valder Valeirão/Otroporto

Uma iluminação cênica decorava a fachada da Galeria Otroporto. Na entrada do prédio, dois spots de luz destacavam o pôster da exposição do artista Théo Gomes, que abria naquele dia 2 de dezembro. Após atravessar uma porta de container, passei pela recepção e por uma biblioteca, até chegar ao salão onde mais de 30 obras estavam exibidas. Fazia apenas cinco minutos que a mostra havia sido aberta, e poucas pessoas circulavam pelo local. Ainda era possível ver os trabalhos sem o auxílio total de lâmpadas, pois a luz natural entrava pelas janelas, enquanto o dia se punha lentamente. Mas, o cenário logo iria mudar: era uma noite para beber, conversar, dar risada, abraçar, ouvir música e celebrar a arte e a vida.

Os visitantes iam chegando e pareciam entusiasmados. Pessoas apontavam trabalhos conhecidos, comentavam sobre a técnica do artista e se dedicavam a ler as imagens. A mostra contém imagens figurativas e abstratas e, entre os trabalhos inéditos, uma pintura do deus egípcio Anúbis. Ao observar essa pintura à certa distância, é possível entender o elemento figurativo. Porém, ao se aproximar, descobre-se o universo de desenhos que preenchem o quadro. Ou seja, em cada centímetro surgem novos significados a serem descobertos. Não era raro ver pessoas se aproximarem da tela e exibirem expressões de admiração, surpreendidas com a potência do trabalho.

O galerista Vinicius Fouchy Moraes, conhecido como Bero, foi um dos responsáveis pela organização da exposição. Bero está atualmente à frente da Galeria Otroporto, mas também é artista e parceiro de criação do Théo. Os dois se conheceram quando eram alunos do Centro de Artes da UFPEL. “Tem um magrão novo que não para de rir, e o Pelegrim [professor] paga um pau pro trabalho dele, e ele não para de desenhar’’, disse um colega ao Bero. No mesmo dia, no intervalo das aulas: “saiu um cara gigante de dentro do prédio, dando risada – era ele. Nós fumamos um, ele tinha um caderno e, vendo os desenhos, me apavorei com o estilo e a qualidade’’, contou o galerista.

Nascia ali uma amizade marcada por ateliês compartilhados, exposições, produção de eventos e, em busca do progresso da pintura, algumas experiências lisérgicas no processo criativo. Durante o período em que dividiram um estúdio de tatuagem, Bero relembra: “Várias vezes eu ia trabalhar só pra conversar com ele, ficar perto dele.” E complementa: “Eu enchia o saco dele e ele nunca ficou brabo, sempre sorrindo, sempre de bom humor’’.

Deus egípcio Anubis na Exposição Théo Gomes na Otroporto – Foto Valder Valeirão/Otroporto

Na mesma semana da exposição na Otroporto, encontrei o Théo Gomes em sua casa. A primeira coisa que reparei em seu quarto foram os trabalhos: na parede lateral, havia uma tela pintada pelo Zudizilla; na parede perpendicular, um quadro pintado pelo próprio Théo, com a figura de uma mulher de perfil; e, na parede oposta, uma ampliação da Monalisa, de Leonardo da Vinci. Por estar passando a maior parte do tempo deitado, Théo mantém, ao alcance das mãos, cadernos, canetas, lápis e livros. Sobre uma mesa de cabeceira, um projetor direcionado para o teto, exibia imagens do Festival de Jazz de Montreal.

Théo de Matos Gomes da Silva é natural de Bagé. Para ele, a arte é uma herança de família. “Eu desenho desde sempre’’, disse, ao recordar o aprendizado com seu avô, Rubens. “Meu avô adorava desenhar. Quando eu ia na casa dele, ele sempre estava desenhando. Ele me incentivava para eu desenhar junto e sempre me dava material de desenho de presente, isso quando eu tinha 3, 4 anos’’.

Durante o ensino fundamental, o artista manteve aulas de desenho na Casa de Cultura Pedro Wayne. Já integrado à cena artística da cidade, recebeu o primeiro convite para expor seus trabalhos aos 13 anos. “Uma amiga me conseguiu três sacos de flyers promocionais, era um papel couchê tri bom que dava para usar o lado branco; só precisava comprar caneta’’, lembrou. “Daí fiz uma série de mulheres e mostrei para a Norma Vasconcelos, que era diretora da Casa de Cultura. Ela curtiu e me convidou para expor durante as atividades da Semana da Mulher.’’

O progresso dos seus estudos artísticos contou com a ajuda de uma figura marcante na história de Bagé. Foi em uma vernissage no Espaço Cultural Da Maya que ele conheceu Zuleika Torrealba. Dona de um gigantesco complexo empresarial, Zuleika era filha do decano da navegação brasileira, Wilfred Penha Borges, e casada com Gonçalo Torrealba, filho do poeta chileno Ernesto Torrealba. “Troquei Paris por Bagé’’, ela dizia, ao mencionar a mudança do mobiliário de um apartamento na capital francesa para a casa que construiu em meio à vastidão do pampa. Na vernissage, Zuleika viu o caderno do Théo e gostou dos desenhos. Quando ele mencionou que estava terminando o ensino médio, Zuleika, sem hesitar, disse que o Espaço Da Maya financiaria um curso pré-vestibular para ele. Foi assim que o Théo decidiu seguir os estudos no Centro de Artes da UFPEL e se mudou para Pelotas.

Exposição realizada em 2003 durante a Semana da Mulher na Casa de Cultura Pedro Wayne.

Era início da tarde, e o sol estava forte na rua. Théo mantinha a veneziana quase fechada; apenas aqueles furinhos entre as palhetas estavam abertos, e a luz que passava por eles criava uma textura no quarto. Enquanto conversávamos, ele recebeu a visita de profissionais da saúde que prestam atenção domiciliar com cuidados paliativos. O artista, que está passando por um tratamento oncológico, contou sobre a quimioterapia: “Eu estava fazendo sessão de 15 em 15 dias. O problema é o pós. Eu ficava vários dias mal, e, quando começava a melhorar, e conseguia comer alguma coisa, me alimentar normalmente, almoçar… passavam dois, três dias, e já começava outra quimio. Muito em cima. Aí teve um dia que eu passei muito mal. O dia estava calor, e eu estava com frio. Fiquei tapado o dia todo, suando, troquei de camiseta várias vezes… parecia que tinham molhado num balde. Então falei pro médico: tem que parar uns dias, está muita coisa. Aí ele deu esse intervalo. Conseguimos um remédio pela Justiça, de forma judicial, porque é muito caro. Agora vamos trocar essa quimio, que é muito forte’’.

Em seguida, ele abriu um sorriso quando perguntei sobre a Baleia Fumeta: “É um personagem que surge sempre trazendo boas vibrações. Ela passa uma coisa boa para mim, é um personagem engraçado’’. A Baleia Fumeta é um dos desenhos mais conhecidos do artista. Na exposição da Otroporto, ela aparece como ícone nas fichas técnicas e na composição de alguns trabalhos. “Eu coloco ela meio escondida em algumas telas; a galera curte procurar, fica meio Onde Está Wally?. Às vezes, eu nem coloco, e a galera fala que encontrou. Eu respondo: Ah, tá bem”, contou o artista, sorrindo.

Durante os estudos universitários, o artista explorou diversas técnicas, transitando entre desenho, pintura, graffiti, tatuagem, entre outras. No entanto, seu estilo preferido é o desenho, mais especificamente, caneta sobre papel. Enxergamos essa preferência em seus trabalhos mais detalhistas, aqueles em que é possível passar horas diante do quadro, descobrindo novos elementos. O artista relaciona o seu processo de criação ao fluxo de consciência, uma técnica de escrita caracterizada por uma expressão desordenada e livre de pensamentos, entrelaçando impressões pessoais e associações de ideias. Ele começou a desenvolver esse estilo quando o Espaço Da Maya encomendou um trabalho para uma exposição com a temática “Tempo”. “Eu pensei: vou fazer uma tela iniciando hoje e só terminar na data de entrega. Vou desenhar todo dia o que for acontecendo no meu cotidiano. Essa será minha ideia de tempo”, explicou.

Por consequência do tratamento de saúde, houve períodos em que o Théo não conseguia produzir. Assim que retomou o desenho, teve ainda mais certeza da importância da arte em sua vida: “É um remédio para mim, até mais que a quimio”, afirmou. Mesmo nesse contexto, em 2024, o artista produziu mais de 100 trabalhos. Realizou exposições no Cortex Hairdressers, Flama Jardim, Ágape Espaço de Arte, Santa Casa de Pelotas, Corredor Arte do Hospital Escola, Florica Flor & Café e revelou que há mais projetos em andamento. Sobre sua expressão artística, comentou: “Eu sempre tento me soltar, ser o mais cru possível para passar o que estou sentindo. Cada vez mais, a gente tem que fazer o trampo do jeito que a gente quer fazer, e já era. O mundo vai se encaixando ao redor, o caminho a estrada vai se fazendo”.

Na noite da exposição na Galeria Otroporto, além das pinturas, foram vendidos camisetas, prints e botons. Comprei um print com a imagem de uma mulher negra de tranças, que já está emoldurado e pendurado na parede da minha sala. Quando consegui me aproximar, Théo estava sentado em uma poltrona no canto do salão. Parabenizei-o pela exposição, e ele agradeceu com um sorriso. Parecia muito feliz, e não seria diferente: além de estar rodeado por amigos, com uma mão segurava um brigadeiro e, com a outra, uma taça de champanhe.

Retrato do artista Théo Gomes durante sua exposição na Galeria Otroporto – Foto: Valder Valeirão/Otroporto

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Exposição Théo Gomes na Otroporto
Endereço: R. Benjamin Constant, 701a – Porto, Pelotas – RS
Visitação de 2 a 20 de dezembro, de segunda à sexta, das 14 às 17 horas.
Saiba mais em: https://otroporto.com.br

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