Skate, família e empreendedorismo – entrevista com Otávio Souza 


“Tenho para mim que personalidade a gente não compra, a gente nasce com ela. Muitos são influenciados porque não têm personalidade. Inclusive, na nossa cena’’ - Foto: Lucian Brum

Quando o skatista Otávio Souza publicou no Instagram um vídeo da manobra “wallride crooked” no prédio do Clube Caixeiral, compreendi na hora que daria uma fotografia interessante. O prédio de estilo eclético, construído em 1904, tem na sua base aberturas para ventilação do porão. Foi nessa pequena janela que ele conseguiu realizar sua intervenção, evidenciando a interação entre skate e arquitetura. O espaço urbano, muitas vezes projetado com uma função específica, ganha um novo significado quando reinterpretado pelo skatista, que transforma elementos como degraus, corrimãos e, nesse caso, uma janela, em obstáculo para sua expressão.

Nos encontramos em um sábado de janeiro para fazer a fotografia. O skatista chegou acompanhado de sua família. Fizemos uma sessão de cerca de vinte minutos e conseguimos capturar um bom registro do momento em que ele executou a manobra. Depois, ficamos conversando por um tempo, e propus publicar a foto junto com uma entrevista. Nela, Otávio falou sobre seus primeiros passos no skate, seu empreendedorismo à frente da marca 91 Skateboard, sua família e seus sonhos. 

Lucian Brum: Tu lembras do seu primeiro skate e do momento em que decidiu começar a andar?

Otávio Souza: Sim, mano. Eu era criança, tinha uns seis anos. Ganhei o primeiro skate da minha dinda, que morava em Chapecó na época. Não lembro se foi de Natal ou Dia das Crianças. Quando ela vinha, trazia de lá os presentes para mim e para minha irmã. A febre naquela época era andar de bike, então, entre os meus amigos, fui um dos primeiros a ter um skate. Era um tubarão, cheio de grab. Tinha até um freio, aqueles freios no tail, sabe? O skate era muito louco, todo preto, com os freios verdes, as rodas verdes de plástico, e não andava merda nenhuma. Comecei andando sentado, que nem carrinho de rolimã, e, mano, o bagulho era uma loucura. Depois, conheci a galera que começou a andar de skate perto da minha casa, e a gente começou a se juntar para andar ali na Catedral e no SESC. O prédio do SESC não tinha aquelas grade na frente, era tudo aberto. No fundo, tinha uma escada de três degraus; na frente, uma de dois, e nós ficávamos andando ali o dia inteiro. Foi nesses picos que tive meus primeiros contatos com o skate. Nas bordinhas ali da Catedral, na hora da missa, tinha que dar a manobra e largar fora…

Lucian Brum: Tu lembras de algum momento marcante desse início, algo que tenha sido memorável?

Otávio Souza: Cara, eu tenho uma memória. Um bagulho que me marcou rolou num dia em que nós estávamos andando de skate no SESC. Eu aprendi a mandar flip body varial. Pior que eu não sabia dar o flip na base direito, mas dava flip body varial. E um mano viu eu mandando o flip body varial e começou a tentar. E, mano, o bicho deu a manobra, caiu em cima, o skate espirrou – e explodiu o vidro do SESC. O SESC era todo de vidro, com paredes de vidro, e o bicho explodiu uma parte. Nós andávamos ali, sei lá, a um ano, e nunca tínhamos estragado nada. No primeiro dia, ele estava ali pela primeira vez, errou a manobra e BUM! Foi aquela correria, aquele monte de criança correndo. Mais tarde, nós passamos ali para ver como é que estava, porque eu morava no caminho. Tinha que passar pela Gonçalves Chaves para ir para minha casa, que era na Miguel Barcelos, do lado do colégio Monsenhor Queiroz. Quando passei, vi que tinha um carro ali na frente, mas os caras não conseguiram arrumar o vidro no mesmo dia e usaram tipo um móvel para tapar, e ninguém ver que estava aberto. Aí a gente pensou: “Bah, agora torrou o nosso piquinho, né?”. Nós pensamos que ia torrar e demos um tempo de ir ali. Mas depois voltamos a andar de skate lá.

Lucian Brum: Como foi quando você entendeu que precisava de um skate melhor? Tu lembras onde comprou seus primeiros skates?

Otávio Souza: Quando realmente entendi que ia andar de skate, quando minha mãe viu que eu realmente gostava de andar, ganhei de presente de aniversário um skate da loja Tripsul. Foi nessa época que eu também descobri a pista da Tripsul. Comecei a colar na pista e virei local mesmo. Minha mãe tinha um bar no colégio e sempre trabalhei com ela. Então, eu tinha o meu salariozinho. Minha mesada era trabalhar e ganhar o meu dinheirinho. E com o meu dinheiro, cara, eu pagava a mensalidade da pista. Eu não pagava o entre diário, eu pagava para andar o mês todo e tinha o passe livre. Eu ia todos os dias. Aquela pista ali foi onde eu consegui evoluir mesmo, pegar base. Foi onde comecei a ver as manobras, ver outros skatistas manobrarem e conhecer a cultura do skate. Ali, eu conheci o Maneca. Eu era criança, o Maneca é cinco anos mais velho que eu, e fiz amizade com ele ali. Então… Cara, me lembro de tentar um flip no quarter. Era o que eu ficava o dia inteiro tentando. Um dia, mano… Tinha uma calça que eu gostava, que eu usava sempre, era tipo o uniforme de andar de skate. Eu tava tentando o flip no quarter, escorreguei na madeira, caí e me enganchei num prego, mano. Eu abri a calça toda na perna e fiquei até com a bunda de fora. Tive que largar para a baia segurando a calça. Mas troquei de calça e voltei pra pista.

O skatista Otávio Souza executando a manobra wallride crooked no prédio do Clube Caixeiral.
Foto: Lucian Brum

Lucian Brum: Como surgiu a ideia de criar a marca 91 Skateboard? E qual é o significado por trás do nome?

Otávio Souza: A 91 Skateboard é de 2018. Ela surgiu, na verdade, por uma inspiração nas marcas Impulso, do Pablo “Xuxu”, e Yé, do Ari. Eles começaram a nos mandar uns shapes, e, quando eu pegava os shapes, achava muito foda. O Ari eu conheci há muitos anos e tal, então pensei: “O cara é daqui, da galera, e tem uma marca”. Isso mostrou que era possível criar uma marca também. Aí comecei a pesquisar como fazer shape, tipo, onde fazer, em qual fábrica. O primeiro cara com quem fiz contato perguntou para mim: “Tu quer o shape como, de qual tamanho?”. Respondi: “Manda um protótipo”. Ele mandou quatro. Foram os primeiros modelos. Era um shape mais pesado, feito de marfim, mas foi o que deu para fazer no início. Ah, 91… O que significa? Cara, sabe quando vem uma coisa na tua cabeça e tu tem certeza de que era para fazer aquilo? Pensei logo de cara: 91 Skateboard, porque é o ano em que eu nasci. Pensei nisso e botei para frente. Nunca pensei em outro nome. Parece que era um bagulho que era para ser, saca? Pesquisei no Instagram para ver se tinha alguma coisa, não achei nada e fiz um Insta da marca na hora, para garantir o nome.

Lucian Brum: E quantos shapes tu já produziu até hoje?

Otávio Souza: Hoje, contei lá em casa e foram 24 modelos de artes diferentes. Algumas dessas artes fiz mais de uma prensagem. Não sei quantos shapes, em unidade, já mandei fazer, mas sempre fazia uns 10 shapes de cada arte. Então, se o cara for pensar, já tem uma quantidade legalzinha, até por ser uma marca underground.

“Eu nunca ganhei dinheiro com a 91, pelo contrário. Sempre mostrei para a galera que queria fazer os shapes e, com o lucro, investir em obstáculos
“Do It Yourself” ou incentivar algum skatista’’

Lucian Brum: Quais são os principais desafios de empreender no mercado do skate? Além da dificuldade de obter materiais de qualidade, como é o processo de conquistar o público e incentivar a galera a apoiar uma marca independente?

Otávio Souza: Eu nunca ganhei dinheiro com a 91, pelo contrário. Sempre mostrei para a galera que queria fazer os shapes e, com o lucro, investir em obstáculos “Do It Yourself” ou incentivar algum skatista. Fazer o dinheiro girar para nossa galera. Muitos obstáculos lá do Ginásio foram pagos pela venda de shapes da 91. Mas o que foi acontecendo? Os caras compravam shape a preço de custo e demoravam 2, 3 meses para pagar. Então, eles mesmos me mataram, saca? Outra coisa que rola é que, quando compro uma peça, uso até não dar mais. A galera espera eu gastar a peça para pedir ela de apoio ou negociar a peça usada. Isso não fomenta a grana e vai matando o mercado. E foi isso que aconteceu com a 91.

Lucian Brum: Tu achas que a galera realmente não tem grana para investir ou, de certa forma, acaba se acomodando?

Otávio Souza: Acho que a galera se acomoda e que eles têm outras prioridades. Porque, sei lá, para ir num rolê, tem grana, tá ligado? Preferem andar com o shape sem rabeta do que pegar esse dinheiro que vão gastar no rolê e se organizar. É tipo pensar: “Eu quero muito um shape novo. Vou ficar duas, três semanas sem sair e, com esse dinheiro que vou gastar no rolê, vou comprar um shape.” São prioridades. Cada um faz o seu corre, eu respeito, mas não adianta reclamar depois.

Lucian Brum: Tem algum skatista que te influenciou desde o início? Alguém que, quando tu viste pela primeira vez, te marcou e tu nunca mais deixou de acompanhar?

Otávio Souza: O Carlos de Andrade, que estava aqui na cidade, sempre foi uma referência. O Wagner Ramos, Nilton “Urina”, que não é mais “Urina” e agora é Nilton Neves… O Cesar Gordo também, o Gordo era foda… O Gugu Ramos, essa geração aí. Quando a tour da Low Pressure estava na cidade e veio junto o Carlos de Andrade, pô, conhecer o cara que sempre te influenciou no skate e ver que ele é uma pessoa simples, que respeita as pinta, tu passa a admirar mais ainda. Porque é foda tu admirar o rolê de um skatista e nunca conhecer ele. E quando tu conhece e vê que não é um cara mau caráter, tu passa a admirar mais ainda. O Carlos de Andrade foi muito fechamento, a gente mantém contato. Claro que o bicho tá sempre no corre, mas sempre responde as mensagens, comenta as paradas nas redes, e isso é foda.

Lucian Brum: Vejo que tu andas de skate direto com a tua família, e seus dois filhos, Thierry e Théo, também já são skatistas. Como foi apresentar o skate para eles? Foi algo natural ou você os incentivou?

Otávio Souza: Sempre foi natural, mano. Eu sempre tive essa parada de pensar que, quando tivesse meus filhos, iria fazer com eles as coisas que eu gostava. Talvez porque meu pai não tinha um hobby, tipo jogar bola, andar na rua; essas coisas eu fazia com meus amigos. Os nossos momentos de pai e filho eram nos jogos do Brasil. Era nesse momento que meu pai encontrava os camaradas dele, tomava uma cerveja, falava palavrão, mostrava quem ele realmente era. Então, entendi que a gente tem que ter uma postura como pai, tá ligado? Porque, como eles são crianças, absorvem muitas das coisas que a gente faz. Quando eu ia andar de skate e comecei a levar o Thierry, levava mais para estar comigo. Lá, ele jogava a bola dele ou levava um carrinho para brincar, mas também tinha o skate, caso ele quisesse andar. Só que ele começou a gostar do skate, começou a andar, meus amigos viraram amigos dele, viraram os tios dele, e, com isso, ele pegou gosto naturalmente. Com o Théo foi louco, porque ele nasceu em 2018, bem na época em que estava rolando aquela cena no calçadão, quando ainda não tinham botado os bancos e nós andávamos de skate nas bordas de ferro. No fim de semana, eu botava o bebê conforto em cima da caixa, ele ficava quietinho, e nós ficávamos andando de skate ali o dia inteiro. No ginásio também, várias vezes eu trocava as fraldas do Théo em cima da borda. Falava para a gurizada: “Ô meu, peraí, segura aí, rapidinho.” Usava a borda como fraldário. Então, eles sempre estiveram naturalmente no meio do skate.

Lucian Brum: O que tu esperas que eles aprendam com o skate além das manobras? Achas que o skate pode ensinar algo mais para eles além da parte técnica?

Otávio Souza: Com certeza. Uma coisa que eu incentivo muito é eles terem personalidade. Isso é uma parada que eu preservo. Porque eu tenho para mim que personalidade a gente não compra, a gente nasce com ela. Muitos são influenciados porque não têm personalidade. Inclusive, na nossa cena, algumas pessoas tentam falar pelos outros. Um dissemina uma coisa, e todo mundo começa a repetir. Se tu tem personalidade, tu já não absorve. Tu coloca na balança se é certo ou errado, se tu quer seguir aquela ideia ou não. São esses exemplos que eu passo para eles e reforço: “Cara, tem que ter personalidade.” Porque, se eu quiser que eles usem as mesmas roupas que eu uso, escutem as bandas que eu escuto ou vejam os vídeos que eu vejo, vou estar fazendo com que eles sejam uma versão estendida de mim. Eu quero que eles sejam as melhores pessoas da nossa família, mas só vão conseguir isso se fizerem as próprias escolhas. Claro, em coisas importantes, a gente tem que agir como pai e mãe. Mas nas coisas que vêm deles, eles precisam ter liberdade para escolher, e isso também podem aprender com o skate. 

Lucian Brum: Que mudanças tu percebeu na cena do skate desde a época em que começou a andar até os dias de hoje?

Otávio Souza: Hoje temos acesso a muitas coisas, tanto que é possível mandar vir um shape da gringa muito mais fácil do que antigamente, por exemplo. Com as redes sociais, temos acesso às marcas, vamos conhecendo os materiais e acompanhando os novos modelos. E é muito mais fácil chegar hoje em uma skateshop e, quando eles forem fazer um pedido, pedir junto uma peça da marca tal, tamanho tal, modelo tal, dureza tal… e provavelmente os caras vão pedir, porque sabem que tu vai lá comprar, porque tu foi procurar isso. Antigamente, tu ia nas lojas comprar o que alguém um dia achou que ia vender. E eu não gosto de usar qualquer tipo de marca, tá ligado? Uma marca que tem uma história ou que seja algo com o que eu não concordo, eu não uso. E agora conseguimos ter o conhecimento se as marcas são realmente o que esperamos que elas sejam, e se o cara se identifica.

Lucian Brum: Tu tens algum objetivo ou sonho no skate que gostaria de realizar?

Otávio Souza: Cara, eu gostaria de viver da marca 91 Skateboard, fazer com que ela fosse a minha fonte de renda, e conseguir que outras pessoas pudessem viver de skate também, ia ser uma parada legal. Acho meio difícil, por tudo isso que eu já te falei. Mas não é impossível, erros e acertos fazem parte do processo. Pagar as minhas contas com a 91, botar pessoas para andar de skate com o dinheiro da marca, construir outros picos, esse seria o meu sonho.

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