O que acontece quando a cor da sua pele deixa de ser um passe livre?


cor da sua pele
Halle Bailey no filme "A Pequena Sereia" - Disney/Reprodução

Após a divulgação do trailer de A Pequena Sereia, estrelado pela atriz, Halle Bailey, a internet explodiu em comentários que mascaram o racismo com argumentos fracos, que alegam incongruência não somente histórica, mas também cultural

Por Daniela Alves

Tudo começou no dia 9 de setembro de 2022, quando teve início a D23 Expo: The Ultimate Disney Fan Event, e juntamente dela, foram divulgados alguns dos futuros lançamentos da Disney, tais como: Divertidamente 2, Desencantada, Mufasa: O Rei Leão, e um dos mais polêmicos, cujo trailer foi revelado no primeiro dia, A Pequena Sereia, com Halle Bailey no papel da sereia, Ariel. 

A internet, é claro, ferveu em burburinhos e dividiu-se em opiniões, algumas que consagram a atriz negra por ter alcançado esse papel de protagonismo com maestria mesmo nas audições, às quais foi especialmente convidada para fazer os testes, outras em que Halle e a produção do filme, em si, receberam inúmeras críticas e comentários de ódio, pois do ponto de vista de alguns, não poderia haver uma sereia negra. 


Em torno de claros comentários de cunho racista – mesmo que estruturalmente falando, debates e discussões de extrema importância foram abertos na internet e alguns dos levantamentos apontados pelos fãs trouxeram questões pertinentes à tona, como por exemplo, o fato de que pessoas de cor (seja ela qual for) podem ocupar o papel de personagens que inicialmente seriam designados a atores e atrizes brancos, sem interferir na história já criada, de uma maneira que estes mesmos atores e atrizes brancos, não podem, de forma alguma, ocupar um papel que coloca pessoas etnicamente racializadas em seu protagonismo, pois isso mudaria completamente sua história. Mulan não seria Mulan, Pocahontas não seria Pocahontas e Tiana seria uma história completamente diferente. Em contraposto, contos como Rapunzel, Cinderela, Bela Adormecida e afins, seguiriam exatamente o mesmo fluxo, pois a etnia das personagens não interfere diretamente no desenrolar de seus roteiros, além de não serem importantes ou relevantes o suficiente para interferirem na história apresentada.

Quando falamos sobre isso, entramos em um campo muito amplo das discussões sobre racismo e sobre o que a revolta por um personagem fictício, não ser como é – ou como foi definido a 33 anos atrás, quando foi lançada a primeira animação de A Pequena Sereia, que ilustra a clássica sereia de cauda verde, pele branca, cabelos vermelhos e que fala com peixes e caranguejos de senso de humor duvidoso, pode gerar. 

No YouTube, o trailer oficial divulgado pela Disney obteve tantos dislikes e comentários racistas que a plataforma acabou ocultando o botão que mostra a contagem dessas reações negativas, todavia, antes disso, o vídeo contabilizava cerca de 1,5 milhões de dislikes. 

Os comentários que tomam a internet, escondem seu racismo por trás de argumentos fracos e que inúmeras vezes pontuam em seu início um “não sou racista, mas…” e a partir dessa continuidade dada a uma sentença, se propaga uma cultura que desumaniza e segrega uma população inteira por conta da cor de sua pele. Assim sendo, partindo do princípio de que sereias não existem, qualquer argumento de divergência histórica ou cultural com a princesa característica da clássica animação da Disney, cai por terra, pois a história dela, nada envolve a cor de sua pele e isso não interfere no desenrolar de nada, ou sequer é fator de importância a ser considerado. 

Lamentavelmente, objeções a escalação de atores negros para interpretar personagens descritos como brancos têm se tornado cada vez mais comuns na internet, e isso se dá ao fato de que, finalmente, após apenas 134 anos do fim da escravidão no Brasil, estamos vivendo um período em que a cor da pele está deixando de ser um passe livre para qualquer coisa, e o talento, somado ao que cada ator e atriz tem a oferecer ao personagem proposto, está sendo realmente levado em consideração. Essa substituição, é claro, está sendo acatada com fúria por alguns, pois é difícil desejar a mudança de um sistema que o favorece tanto. Todavia, este é um começo considerável a valorização de pessoas racializadas em promissoras produções das grandes marcas, afinal, é chegado o momento de o personagem negro deixar de caber apenas nos esteriótipos que o limitam a uma persona engraçada e que morre de forma precoce, apenas para não ocupar tanto tempo de tela.

Em um levantamento feito por fãs em 2020, foi detectado que a Disney seguia um padrão com seus protagonistas negros em animações. O padrão: transmutar todos eles em algo, de forma que o protagonista deixava de ser negro e passava a maior parte da duração de seus longas, preso na pele de um sapo, uma pomba ou uma bolha azul.

Ilustração de Erden Zikibay mostrando o tempo de tela de cada personagem negro da Pixar como algo além disso

Em maio de 2022, quando foi divulgado o elenco principal de Percy Jackson, série que adapta a franquia de livros homônimo, a atriz de 12 anos, Leah Jeffries, escalada para interpretar Annabeth Chase, uma das protagonistas e melhores personagens da saga, além de par romântico de Percy no futuro dos livros, também foi vítima de ataques racistas. Tudo por estar ocupando o lugar, que narrado nos livros, seria de uma garota loira e de olhos azuis. 

Rick Riordan, autor da obra, pronunciou-se em suas redes sociais, defendendo a escalação da atriz, além de deixar claro em um de seus textos que ela será “uma inspiração para a próxima geração de garotas que verão nela o tipo de heroína que querem ser.” Riordan, reforçou ainda que Percy Jackson é uma obra sobre diferenças e o quanto elas nos fortalecem, e que os ataques direcionados a Leah, vão contra qualquer coisa que ele já tenha escrito e ferem o que a obra realmente tem o intuito de passar.

Discussões sobre o protagonismo negro não são recentes, como um exemplo disso, podemos citar quando o mesmo tipo de revolta foi tida em 2015, quando a peça de teatro, Harry Potter And The Cursed Child foi anunciada e juntamente dela, veio a tona, a escalação da atriz Noma Dumezweni, no papel de Hermione Granger, uma das principais personagens da saga britânica. À época, foi revelado pela autora, J.K Rowling, que em nenhum momento dos livros a cor da pele de Hermione foi descrita e os fãs tomaram como base para isso, a adaptação cinematográfica dos livros, que traz Emma Watson no papel da bruxa de origem trouxa (humana sem magia).

Levando em conta que estamos no ano de 2022 e a ecravidão ainda seja  considerada algo relativamente recente, já está mais do que na hora de termos essas discussões e de normatiza-las  ao ponto de que se tornem irrelevantes, uma vez que a escalação de atores não deve ter fundamento na cor da pele destes e sim no talento demonstrado por cada um.  

Em conversa com a discente de enfermagem pela Universidade Federal de Pelotas, Jade Ornelas, que ingressou na universidade através do sistema de cotas raciais, comenta que “Essas adaptações, que colocam personagens negros como protagonistas são algo positivo, pois faz com que as pessoas negras se sintam também importantes, principalmente para crianças que estão em fase de desenvolvimento e também autoconhecimento. Traz o sentimento de “eu também posso” e isso se torna acolhedor, de alguma forma.”

Com isso, constatamos que estamos vivendo um período em que o protagonismo e o cinema negro vem ganhando espaço e aclamação, vemos isso através de Zendaya, sendo a atriz mais jovem a ganhar o Emmy de Melhor Atriz em Série de Drama, além de ser também a primeira mulher negra a vencer duas vezes nessa categoria. Não podemos deixar de citar também, as aclamadas obras produzidas pelo cineasta Jordan Peele, tais como: Corra (2017), Nós (2019) e o recente lançamento, Não! Não Olhe! Que em seus enredos trazem, além de um elenco majoritariamente negro, críticas sociais profundas, que revelam e denunciam muito daquilo que nossa sociedade busca esconder e camuflar.

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