A poesia de Álvaro Barcellos é límpida como cristal, no sentido de que o hermetismo não faz parte da sua poética. Ainda que trabalhe com metáforas originais, sua arte não segue o caminho da dicção esotérica, para “iniciados”.
Em muitos poetas, o hermetismo pode esconder a falta de profundidade. No caso da lírica de Álvaro, a agudeza de sua arte, a força prescrutadora dos eventos da vida são apresentados com grande naturalidade em seu verso ritmado. Muitas vezes lembra a poesia de Ferreira Gullar, a partir de Dentro da Noite Veloz, quando o maranhense subtrai o experimentalismo verbal de seu verso em prol de uma dicção natural. No tocante a essa voz sem barroquismos, há um texto de Barcellos, “O Poema e seu segredo”, que assenta tal postura: “O segredo dos poemas /não está no uso/ de palavras rebuscadas /que só foram criadas / para constar /em velhos dicionários (…)/Há que brotarem os poemas / como as águas correntes / das cachoeiras”.
É um erro, no entanto, pensar que a poesia do autor é simples. Um leitor perspicaz nota que Álvaro trabalhou com esmero nos versos para que eles soassem harmônicos e ritmados. Todo esse equílibrio é fruto da labuta com a palavra. Vejamos, como exemplo, esta estrofe do poema “As Coisas”: “Eu já nem sei se há caminho / se há mesmo um futuro / se hoje me esqueço – sombrio – / ou se algo inauguro./ Cambaleio e esbarro / nesse espaço denso e duro /e me sufoca o mormaço /me desfaço contra o muro.” É possível notar o trabalho sonoro no referido trecho. Além das rimas, a presença marcante de anáforas e aliterações. A repetitividade sonora contribui para enfatizar o movimento do eu lírico em sua caminhada.
A temática social é elemento marcante em seus poemas; sem jamais termos a impressão de poesia panfletária. Além da denúncia, há o labor e expressividade técnica. Falam com a realidade de uma forma inteligente e universal. Como exemplo, um trecho de “Uma Cidade Inusitada”: “Em minha cidade/ confundem-se inércia/ e velocidade…/ cidade repleta / de lírios e delírios: / mendigo tremem de frio / múltiplos martírios rasgam/ a avenida Brasil/ com seus tons cinzas / ranzinzas.”
O poema “Leituras” nos leva a refletir também sobre outra faceta importante nos poemas de Álvaro: a metalinguagem. No referido texto, temos o eu lírico estabelecendo um inventário das suas leituras: “Em quase tudo / que leio / há algo que não entendo /e no entanto /das leituras /eu jamais me arrependo /eu no berço / das leituras / crio asas e vou vivendo;(…)”. Cabe citar o teórico Harold Bloom, quando sustenta o conceito de influência como um desvio de interpretação. Segundo Bloom a influência se dá por uma leitura oblíqua, truncada; o que ele chama de “desleitura”. Dessa forma o texto que se origina da influência/desleitura surge como um elemento original, trazendo poucas marcas do texto matriz, que serviu de inspiração. Nesse poema nota-se também a contraposição ao famoso verso do poeta Mallarmé “A carne é triste, sim, e eu li todos os livros”. Sabedor da impossibilidade de abarcar a literatura universal, o eu lírico (e empírico) presta homenagem carinhosa àqueles autores que norteiam seu afeto e sua poesia. E essa homenagem fica evidente, também, em poemas que ele dedica aos seus mestres da escrita: Gabriel Garcia Marquez, Charles Bukowski, Vinicius de Moraes, Drummond…
Há momentos em que ironiza a passagem do tempo. Como em “Espelho”: “tudo parece conspirar: / o espelho da sala/ precisa ser trocado/ e com urgência”. Uma forma engenhosa de lidar com o perecimento da matéria e a finitude.
A lírica amorosa também está presente nos poemas de Barcellos, como em “Bocas”: “teu melhor sorriso/(o mais franco/ o mais brando/ o mais branco)./ Aquele que devolve/ à tua boca/ sua mais legítima/ condição de flor.”
Se em dado momento, parece ceder à melancolia frente a um mundo hostil, como no poema “Megalópole febril”: “quando andas cambaleando/ de mãos nos bolsos/ pela cidade/ – essa usina inesgotável/ de pesadelos e vazios.”, faz também o caminho inverso, como em Utopias: “se já não faço disso/ movimento/ ainda assim me reinvento/ em utopias.” Até que em Tempo de nascer (p. 38), conclama: “camponeses e operários/ prostitutas e excluídos/ malditos e rebeldes/ de todas as cores/ e formas e credos e raças:/ uni- vos”
Enfim, Um Céu de Tantos Remendos é um ótimo volume de poesia. Num ensaio conciso, se torna muito difícil dar ideia de toda a sua potencialidade lírica. Cabe, para terminar essa breve análise, deixar os versos iniciais do primeiro poema da obra, “Boa Noite”, um golpe certeiro na atenção do leitor: “Então tá combinado / um coquetel de cápsulas / meia hora antes de deitar / que é para não ficar pensando/ na morte que nos assombra.” Depois desses versos, o leitor não vai querer dormir. Se sentirá impelido a chegar até o fim deste céu.
Por Leonardo Alves – Poeta
Um Céu de Tantos Remendos
Autor: Alvaro Barcellos
Natural de Pelotas/RS, Alvaro Barcellos atua como poeta e letrista (com mais de 20 parceiros musicais). Formado em Direito e Letras (com Especialização em Literatura Brasileira Contemporânea/UFPel), busca com sua poesia contribuir na recuperação do senso de humanidade dos povos – sua alma, sua paixão: faróis para novos rumos na peregrinação humana sobre a Terra.
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