Entrevista com a nova Secretária de Cultura de Pelotas


Carmen Vera Roig conversou com o Ecult sobre sua carreira e as perspectivas de seu mandato à frente da pasta. Foto: Lucian Brum

A conversa com a nova secretária de Cultura de Pelotas foi intensa. Em sua primeira frase, ela citou palavras em inglês e francês, com entonação sonora corretamente pronunciada. De cara deu para perceber que aqueles idiomas não foram aprendidos no Duolingo, era algo mais refinado, próprio de alguém que possui repertório. A secretária tem formação em Arquitetura e Urbanismo, com especialização em Patrimônio Cultural, e também é graduada em Letras. Uma profissional com experiência e história na cultura da cidade.

No dia 2 de janeiro, no início da tarde, com o sol a pino, o termômetro do celular marcava trinta e dois graus. Enquanto eu atravessava a Praça Coronel Pedro Osório em direção à Secretaria de Cultura, trabalhadores desinstalavam a decoração de natal da praça. Algumas pessoas uniformizadas, provavelmente em horário de almoço, estavam sentadas à sombra das árvores. Após me identificar na recepção da instituição, fiquei aguardando na antessala do gabinete. O prédio da secretaria é um palacete do século XIX , de onde eu estava sentado, eram visíveis rachaduras nas aberturas e no forro. Escorado na parede lateral, uma chapeleira ao estilo art déco: com espelho circular, seis ganchos para chapéus e suporte para bengalas e guarda-chuvas – dividia o espaço com singelas mesas de escritório.

Posicionado com vista para o pátio interno, o gabinete tem amplas janelas que ajudam a refrescar o ambiente. Duas fotografias e uma espada-de-são-jorge compõem a decoração. Perante a mesa de madeira revestida com couro verde, estava sentada a nova Secretária de Cultura, Carmen Vera Roig. Vestida de maneira discreta, à primeira vista, me chamou atenção os seus óculos de aros grossos, que transmitem a ideia de uma personalidade intelectual. No seu primeiro dia de trabalho, ainda se ambientando, a secretária se abanava com um leque de papel do Connex 2024.

Lucian Brum: Como foi a sua primeira manhã de trabalho na Secretaria?

Carmen Vera: É uma sensação muito interessante de revive, de déjà vu. Eu sou servidora pública e estive na formação da primeira Secretaria de Cultura de Pelotas, em 2001, justamente com o prefeito Fernando Marroni, quando a pasta foi criada pela primeira vez. Mas, naquela época, era o início da secretaria, as coisas ainda estavam se formando. Agora, há uma série de novas demandas. Mas estou consciente da responsabilidade e das dificuldades que vou ter que enfrentar, do ponto de vista burocrático, legal, pessoal e técnico, as quais todas as secretárias mais ou menos enfrentam. Voltar para cá agora tem essa sensação de retornar ao meu lugar.

Lucian Brum: Como foi receber o convite do prefeito Fernando Marroni?

Carmen Vera: Foi uma surpresa, porque, após o governo Marroni, eu saí da Secretaria de Cultura e voltei para a Secretaria de Urbanismo, que era a minha secretaria de origem, para onde eu havia prestado concurso. E, quando eu recebi o convite, voltaram essas lembranças, e eu pensei: “Acho que posso ajudar.” Aceitei no sentido de que posso contribuir, pela experiência e pela capacidade que tenho de ouvir as pessoas. Para aprender e saber como a cultura de Pelotas deve ser atendida, é necessário escutar várias vozes, de vários lugares. Agora, a gente precisa criar políticas públicas para que todos da cidade tenham espaço. Esse é o grande desafio.

Lucian Brum: Falando em desafio, Pelotas é conhecida e reconhecida como uma cidade cultural. Como você acha que a cidade pode aprimorar essa característica e atrair mais turistas?

Carmen Vera: O desafio é transformarmos o nosso patrimônio em algo que promova o desenvolvimento econômico e o turismo cultural. Conseguirmos fazer um mapeamento de todas as expressões culturais e, assim, procurar construir um calendário anual de eventos, para que as pessoas possam estar informadas com antecedência sobre os espetáculos que vão acontecer. Vou contar muito com a ajuda do Concult, que é o Conselho de Cultura, que tem uma representação importante. E, eu acho que tenho que conversar com todo mundo, para criarmos uma solução que tenha um resultado efetivo.

“A minha ideia, o meu sonho, é conseguir potencializar os usos dos espaços públicos por meio da cultura, principalmente nas periferias e nos bairros’’

Lucian Brum: A senhora tem alguma ideia ou projeto pessoal que gostaria de implementar durante a sua gestão? 

Carmen Vera: A ideia que eu tenho é usar minha formação no urbanismo, na literatura, na cultura e também a experiência que eu tive com as crianças, na escuta das crianças, a partir do projeto Urban 95, que é um projeto que pensa a cidade para uma criança de 3 anos, que tem 95 cm. [Na gestão passada, Carmen Vera foi responsável pela Assessoria Especial do Pelotas: Cidade das Crianças]. A minha ideia, o meu sonho, é conseguir potencializar os usos dos espaços públicos através da cultura, principalmente nas periferias e nos bairros. Que os bairros possam ter pontos de encontro e, através do urbanismo, dar qualificação a esses espaços, levando arte e cultura para esses lugares, priorizando crianças e o bem-estar das famílias.

Lucian Brum: Grande parte da produção cultural de Pelotas vem de artistas independentes, muitos ainda em formação, que procuram editais públicos para financiar seus projetos. Como a Secretaria pretende atuar nessa área e apoiar essas iniciativas?

Carmen Vera: A ideia é ter uma diretoria específica para editais e projetos culturais e potencializar isso, tornar mais eficiente. Porque é uma burocracia enorme, e a equipe é muito pequena. Nós vamos tentar cumprir os prazos e criar comitês com outras secretarias, porque a Secult depende diretamente, nesses editais, da Procuradoria Geral do Município, da Secretaria da Fazenda e, dependendo do edital, dos governos federal ou estadual. Nós vamos procurar ter um fluxograma que possa ser mais ágil. Nessa mesma linha, uma das prioridades que tenho é lutar para abrir um concurso de técnico em cultura, para que haja pessoas aqui dentro da secretaria e, quando houver troca de governo, políticas que forem criadas e derem certo permaneçam ativas por esses servidores.

Lucian Brum: O patrimônio arquitetônico é uma das maiores riquezas culturais de Pelotas, mas sua preservação enfrenta desafios, tanto pelos interesses econômicos ligados a prédios privados quanto pela dificuldade do poder público em destinar recursos aos imóveis sob sua responsabilidade. Como secretária de Cultura e arquiteta, a senhora pretende trabalhar para aumentar a conscientização da população sobre a importância do patrimônio arquitetônico da cidade?

Carmen Vera: Olha, Lucian, a vida inteira eu fiz isso. Todos esses prédios que estão aí, que sobreviveram, porque muita coisa foi destruída, são fruto de muita luta desde 1988, junto com a Universidade Federal e a Faculdade de Arquitetura. Houve, na década de 1980, um inventário e o tombamento de dois mil prédios. Em virtude disso, teve episódios de pessoas que entraram com ações na justiça, e os prédios foram “destombados”. Faltava consciência. Pessoas que tinham prédios tombados ou inventariados limpavam as fachadas, retirando exatamente os adornos, motivo pelo qual esses imóveis tinham se tornado patrimônio. Isso tudo culminou no projeto Monumenta. Eu trabalhei na coordenação do Monumenta, o programa que restaurou todos esses prédios do entorno da praça e a própria praça. Inclusive, veio o Gilberto Gil para a inauguração do chafariz da Fonte das Nereidas. Tivemos esse luxo na história de Pelotas. No Monumenta, apenas 26 cidades do país receberam recursos para restauração, e Pelotas estava dentro. Recebemos milhões de reais para restauração, porque o nosso patrimônio é importante para o Brasil. Nesse processo, as pessoas foram entendendo a importância desse patrimônio, e as demolições começaram a diminuir. Isso funciona como algo do ser humano. Foi preciso vir alguém de fora e dizer: “Vocês têm uma coisa maravilhosa aqui.” Mas quando nós estávamos dizendo o tempo todo: “Não destrói, não destrói”, lá vinha as chatas do patrimônio, da mesma forma que chamam os ambientalistas de chatos. Isso tudo já deu frutos. O Dia do Patrimônio é algo extraordinário, quando o centro fica lotado de gente para apreciar o seu patrimônio.

Lucian Brum: Recentemente, os monumentos nas ruas da cidade vem sofrendo depredações, mas também temos exemplos positivos, como o sucesso da estátua de João Simões Lopes Neto e das recém-inauguradas estátuas dos personagens de quadrinhos Mafalda e Betinho. Na sua visão, qual é a importância de termos monumentos nas ruas que valorizem e reforcem a história da cidade?

Carmen Vera: Uma coisa que eu acho muito legal é usar a tecnologia. Por meio de um QR Code, por exemplo, as pessoas podem acessar informações que contém a história daquele lugar ou de algum personagem desse lugar. A questão da depredação é uma questão de violência urbana, e a educação, principalmente das crianças, é o que pode amenizar isso. Porque, às vezes, os monumentos de rua não têm sentido para as pessoas, que acabam roubando uma obra de grande valor, que é derretida e vendida a peso em ferro-velho. É preciso criar uma conexão com essa história. Uma coisa que eu acho muito legal, que a Ana Cláudia, do jornal A Hora do Sul, faz, é algo singelíssimo: relatar o que aconteceu há “xis” anos para quem nunca imaginou que aquilo existiu e, para quem viveu, reviver. Essa conexão das pessoas com seus monumentos e com a sua história é uma chance também.

Lucian Brum: Com a tua experiência de vida e sua formação acadêmica, como defines o significado de cultura?

Carmen Vera: Cultura é tudo: cultura é o modo como a gente senta, o modo como a gente veste, o modo como a gente come, o modo como a gente olha para alguém, o modo como a gente trata alguém. E aí, a arte, nas suas várias linguagens, o teatro, a dança, a música… só vem nos preencher mais, para que a gente se torne uma pessoa mais humana, mais empática. E acho que cada pessoa tem o seu mundo cultural, e, no cruzamento dessas culturas, é que a gente tem essa cidade tão potente. Uma cidade que está precisando de muita ajuda, e eu também espero que todos me ajudem para que eu possa fazer o melhor trabalho aqui na secretaria.

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Veja mais fotos:

Na cerimônia de posse, o prefeito Fernando Marroni posa para uma fotografia junto ao grupo de secretários municipais. Foto: Lucian Brum
Carmen Vera Roig em seu gabinete, no primeiro dia de trabalho na Secretaria de Cultura.
Foto: Lucian Brum
Prédio da Secretaria de Cultura, localizado no centro histórico de Pelotas (02.01.2025).
Foto: Lucian Brum

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