A maior maldição da consciência é a noção de tempo. Todo final de ano apuramos os resultados e a retrospectiva nos liquida. O “restos a pagar de exercícios anteriores” é passivo permanente nas realizações pessoais. Nunca gostei de contabilidade e nunca vou gostar. Não entendo o método das partidas dobradas. Quem dá é credor, quem recebe é devedor. Sempre saio do ano com cara de devedor que não tem como pagar. É calote nos desejos. É prestação atrasada de promessas. Penduro tudo num passado mais do que perfeito. Fiado só ontem. No balanço anual há quem diga que a primeira década deste século 21 foi vazia, sem grandes fatos além do 11 de setembro e da crise econômica. Que não surgiram novos grandes escritores, cantores, atores, bandas. Discordo. Não vou demonstrar aqui que tal ou qual personalidade foi mais ou menos relevante. É cedo pra isso e esse é o ponto. Grandes políticos? Sem comentários. Ok, ok. O Nobel ao Obama e o filme do Lula foram adulações prematuras, mas tampouco gosto de política. Pretendo antes apontar que uma análise da década, logo que acaba, resulta em falso negativo. É passivo a descoberto de memórias sem solidez. Mesmo a História Contemporânea precisa de algum tempo para o necessário distanciamento entre o historiador que a conta e a época por ele vivida. Se bem lembrarmos, ao final dos 90 foi a mesma coisa. Diziam que nada havia de marcante. Os anos 80 (boys don’t cry!) só passaram a ser louvados já neste século e será igual com os anos 00 – é assim que se chama a primeira década? Anos zero? O saudosismo surge sempre depois. Aliás, saudosismo cheira a mofo. Melhor usar o termo passadismo. Demora pro passadismo idealizar o outrora. Permanecemos na década que finda ainda um pouco mais. Imobilizados por segurança. Preenchemos o ano anterior nos cheques, exemplo válido, é claro, para quem já era adulto no século passado. É parte da transição. Sempre negamos o hoje. Isso porque se considera o presente como o pior dos mundos. O que é bom não volta mais. O que é ruim deixará cicatrizes em gerúndio. E colocamos sempre o indicativo na cara do tempo pra falar mal do presente: não, aqui não é legal o bastante. Somos infelizes, insatisfeitos, frustrados, incompletos sempre no agora. Por isso também divinizamos tanto os tempos idos, quanto os vindouros, ao passo que demonizamos o presente. O ontem é o deus do Gênesis que criou o Éden do nada. Para a maioria o que é bom está numa era dourada ou num futuro promissor em que tudo se realizará. A palavra idealizar pode se referir tanto à reelaboração do já vivido, quanto à projeção do que virá pela frente. O amanhã é o deus do Apocalipse que restaurará o Paraíso perdido. A cultura cristã nos apresenta um hoje feio em que lhe basta o seu mal. É pecaminoso. É mundano e deve ser sofrido. Não é incomum ouvirmos de saudosistas absurdos de exaltação ao que as folhas de calendário levaram sob o vento dos tempos. Há quem cultue até do período militar. “Pelo menos não tinha essa bandidagem que está aí” – confessam alguns. É a maldição da consciência! Acidente da evolução que nos tornou mais aptos a sobreviver no ringue da seleção natural. Jesus do Céu, como isso foi possível? Fico devendo. Não sei. Entretanto, resulta daí tudo o que nos diferencia dos animais: a vontade, o poder, o dinheiro, a ganância, a culpa, o refrigerador duplex, a religião, a guerra, a televisão a cores, a inveja, o orgulho, o cigarro e a falta de tempo. O sofrimento vem dos traumas que vivemos no passado. A angústia pavimenta a estrada para o futuro. Ou seja, esquecemos do hoje, que na maioria das vezes é ótimo. O que funciona não é lembrado. Alguém acorda de manhã sentindo satisfação por não estar com dor de cabeça? Mas se tiver uma dorzinha, ou qualquer pequeno desconforto, pronto! Estragou o dia. A década, talvez! Neste ano quero fazer bem diferente. Viver como um neurótico anônimo: um dia de cada vez sem sofrimento. Nada de reflexões sobre o passado. Nada de esperanças para o futuro. Apenas o hoje importa. Pra ser sincero, a década passada até que não foi tão vazia assim e o ano promete grandes investimentos na vida pessoal.
*Márcio Ezequiel – Natural de Porto Alegre, mudou-se há pouco tempo para Pelotas. Historiador e escritor, é Mestre em História pela UFRGS. Estudou a Literatura de Viajantes no RS no século XIX. É servidor da Receita Federal tendo trabalhado de 2001 a 2004 no Chuí, experiência que ensejou a crônica acima. Em 2007, publicou o livro: “Alfândega de Porto Alegre: 200 anos de História.” Atualmente dedica-se a narrativas breves: crônicas, contos e minicontos.
Blog do autor: http://marcioezequiel.blogspot.com
Editor, gestor de conteúdo, fundador do ecult. Redator e pretenso escritor, autor do romance Três contra Todos. Produtor Cultural sempre que possível.