Na tarde ensolarada de uma sexta-feira do mês de julho, embarquei no meu primeiro ônibus pra Canguçu (que eu me lembre). Em algum ponto escondido na área rural do município, está sendo produzido o primeiro disco do cantor e compositor Juliano Guerra, que, depois de meses esperando verba para a gravação de um disco em estúdio, decidiu gravar em casa. No estúdio montado em uma sala de aproximadamente 2x3m que estava sobrando, Guerra tem passado as madrugadas cercado de instrumentos e parceiros musicais, sem contar a família. A influência familiar vem desde o começo do processo: quem cuida das questões burocráticas é a irmã de Guerra, Juliana Pereira. Os planos para o disco original acabaram se metamorfoseando na gravação de um DVD ao vivo no lançamento do disco, com data decretada por Juliana para 18 de agosto, no Cineteatro, em Canguçu. Antes rola o pré-lançamento, no dia 4, no Galpão Satolep, em Pelotas.
Juliano Guerra é um canguçuense de 28 anos cujas primeiras tentativas musicais foram na década passada, como guitarrista de rock. Em 2006, adentrou o mundo do samba no violão e já como compositor, com o Trio (depois Grupo) Noesis. Paralelamente, seguiu no rock com a banda Revelmobil, antes de largar a música por um tempo. O retorno foi no ano passado, no Festival Canguçu da Canção Popular (Fecanpop), onde se apresentou acompanhado do grupo Sapatinho e levou os prêmios de Melhor Letra e Canção Mais Popular por Inclemente. Definido livremente como MPB, o disco, a se chamar Lama, deve cruzar as duas linhas mestras de Guerra, com mais algumas outras.
Comigo no ônibus estavam Diego Portella e o ex-Noesis Eugênio Bassi, que, junto com Guerra, formam o núcleo de criação dos arranjos. Entre o portamalas do ônibus e a bagagem de mão, guitarra, viola, violão, baixo, ganzá, agogô, apitos e outros apetrechos. Na viagem, fui atualizado por Bassi do que já tinha ocorrido até então – no começo das gravações, só com Guerra e ele, definições e experimentos nas músicas já definidas, como Ócio e a premiada Inclemente. “A gente gravou um fósforo. Peguei três palitos de fósforo, pra dar mais som, risquei, e aí começa a música”.
Nem tudo deu certo. “A gente fez varias experimentações com essas sacolinhas, uma sacolinha de carteira de cigarro, que é mais dura, e uma mais tipo ganzá”, (imita o som do instrumento), “achando que ia ser uma grande coisa. Só que aí entrou o pandeiro, e o pandeiro faz o mesmo movimento, aí abafou tudo. Aí a gente tirou o pandeiro, que ficou uma porcaria.” Tempos variantes, vozes em coro e simulando instrumentos foram outros testes da dupla. “Tem muita música que não é samba, e as que são samba a gente tá tentando dissolver um pouco, pelo menos, pra não deixar tão ‘referencial’ ao arranjo do samba tradicional. Não sei qual é o propósito dele, mas o meu é esse”. Voltando a Inclemente, “no fim acho que a gente vai gravar tudo de novo, e a sacolinha a gente vai tirar e botar ganzá duma vez pra não ter problema”.
RIR DA DOR
Já a partir da chegada, passados os cumprimentos aos viventes e o despejo dos instrumentos, o trio Guerra-Bassi-Portella começou, na sala de estar da casa, a planejar os próximos passos. Guerra com um violão, Bassi com outro e Portella no cavaco, diálogos e acordes se misturavam como se fizessem parte da mesma linguagem. Por um momento, parecia que iam trabalhar na faixa-título, Lama, que apareceu em versão samba arrastadíssima no mês passado.
GUERRA – É, mas agora tá totalmente mudada.
BASSI – Vê o que que tu acha. (Para Guerra) Canta aí pra ver.
De tanto rezar domingo, enfim eu fui atendido
E me conformei chorando e me acostumei sorrindo
E passado mais um ano, escapei de mais um tiro
Que eu mesmo me dei na boca de um inimigo antigo
Que é esse mal que assombra meu espelho, teu vestido
A lama é bonita, amigo
A lama é bonita, irmão
A lama me deu abrigo
A lama em meu coração
A lama é bonita, amigo
A lama é divina, irmão
A lama casou comigo
A lama em meu co…
(Bassi procura a nota certa.)
…ração
GUERRA – Tá meio puxado o andamento do… dessa parte, da parte A.
BASSI – É mais lento, né?
GUERRA – É.
Pergunto sobre a origem da lama.
GUERRA – Sabe de onde é que veio essa lama? Agora que eu lembrei, é de uma música que o Eugênio fez. Essa minha música Lama na verdade, até a harmonia, eu quase que te plagiei. Toca em si menor aquela música…
Bassi inicia.
GUERRA – Isso aí. E falava em lama. Na verdade a Lama é uma continuação dessa música.
Ele começa, seguido por Bassi.
Na mesma casa, na mesma cama
No mês de maio, a mesma lama
Do mês passado ao mês seguinte
À mesma hora, o dia chama
GUERRA – A gente tocava essa música no Noesis, a banda que eu tinha com o Eugênio.
BASSI – A gente tocava em si menor?
GUERRA – Si menor.
A nova versão de Lama (segundo Guerra, um “tango/reggae”) foi escolhida para encerrar o disco. Na abertura, Ócio. “Acho legal pensar bem nessa continuidade das faixas, pra montar um discurso pro disco. Ele começa comigo cantando ‘manda avisar que chegou mais um herói pra cavar a cova com as próprias mãos na terra fofa do ócio’ e termina com ‘a lama casou comigo, a lama em meu coração'”. Lama é a mais nova das dez músicas do disco – todas as outras são de 2008 pra trás. Descrevendo cada uma, ele cita referências vão de hard rock farofa a choro a Renato Teixeira. “A gente tentou fazer do arranjo parte do discurso da música. Na canção popular, normalmente o arranjo é escravo da letra. A gente tava tentando fazer diferente. Fazer com que o arranjo também conte uma história ali, que adicione significado. Não é uma parada do tipo ‘Juliano Guerra e Banda’, onde eu toco as músicas do jeito que fiz e o pessoal me acompanha”.
Ele diz que o disco é, principalmente, “sobre rir da dor. É o neguinho que vira caixa de banco e deixa o violão pegar poeira. É ver que quase todo mundo gente fina tá tomando algum tipo de remédio (de Ritalina ao Prozac) enquanto o mundo tá povoado de babacas saudáveis fazendo a mesma merda de sempre. Pra mim é foda ter um distanciamento que me permita ‘saber’ o clima das letras. Mas dá pra dizer que em geral é triste. Mas a experiência de cantar essa tristeza, de juntar os amigos pra gravar, de pensar a música, essa experiência é alegre”.
SAMBA RETO E ENJOADO
De fato a experiência tava divertida demais, o que me levou a duvidar da entrega do disco na data acordada. Depois de muita conversa e canções tocadas – tanto de Guerra quanto de Bassi – ele se decidem por 31 de Dezembro. Era um “samba meio reto e enjoado”, nas palavras do autor, que não sossegou enquanto não achou uma maneira de corromper a retidão da obra. A versão 2008, apresentada pelo Noesis no Fecanpop continua disponível e vale a pena. Depois de várias rodadas, Bassi tira um coelho da cartola.
BASSI – Tava pensando até em botar a guitarra.
GUERRA – Guitarra, tu acha?
Nesse ponto, o repórter já fazia parte do processo.
NEVES – Taí!
BASSI – Eu acho que cabe, uma guitarra aí.
GUERRA – A guitarra com palm mute mesmo, uma guitarra abafadinha?
BASSI – Não sei, teria que pensar ainda. Que que tu acha Roberto?
NEVES – Não, de uma maneira que se veja que é uma guitarra.
BASSI – Não não, tirar o violão e a botar guitarra. Melhor, mais um motivo pra tirar o violão.
GUERRA – Mais um motivo pra não ter violão.
Fechada a questão, a trupe partiu para o estúdio. A guitarra ganhou status de esqueleto da música e foram várias tentativas até se decidir o jeito certo de usá-la. Quando chegou a vez do pandeiro, decidi me retirar pro quarto e deixei a galera gravando sem interferência externa por um tempo.
Por Roberto Soares Neves
Leia também: A concepção da Lama – Parte 2
Editor, gestor de conteúdo, fundador do ecult. Redator e pretenso escritor, autor do romance Três contra Todos. Produtor Cultural sempre que possível.