O clipe de Estesia é um primeiro capítulo de um projeto maior que faz parte do TCC de alunos do curso de cinema e audiovisual, da Universidade Federal de Pelotas. Na direção e roteiro do trabalho estão a própria artista e seu criador, junto de um time de jovens profissionais que trabalham na direção de arte, produção, direção de fotografia, figurino, entre outras tarefas.
A seguir, CASSI3 conta um pouco sobre o projeto do EP visual, desafios da produção independente e sua visão sobre a relação entre arte e política. Vale destacar que neste domingo, a artista apresenta um pocket show na edição virtual do Sofá na Rua (no instagram @sofanarua, às 19h; e no dia 12 fará um show online em seu canal na plataforma Twitch.
– Houve um período em que assinavas seu trabalho artístico com o nome Cassie Borderline. Como e por que ocorreu essa mudança e quando nasce CASSI3?
É muito interessante essa pergunta. É algo que eu realmente gostaria de falar mais vezes, pois é uma parte da minha (re)construção como artista que gostaria que fosse transparente e jamais esquecida. Eu utilizava o nome Cassie Borderline desde que comecei a me montar pela primeira vez, pelo significado de fronteira que carrega a palavra Borderline. Por performar uma drag queen que não se atém às convenções de gênero binário, que se entende apenas como arte, assim como a expressão artística drag queen é, Borderline caracterizava essa minha aparência que está como uma fronteira, entre um e outro, mas para nenhum dos dois.
Posteriormente, veio até mim outro significado da palavra, que correspondia a uma condição mental tratada como distúrbio. Eu sempre busquei lidar com o meu trabalho de forma honesta e responsável, então busquei deixar o mais nítido possível o sentido que a palavra em meu nome carregava, de fronteira. Porém um certo dia uma pessoa veio até mim, declarando ser diagnosticada com Borderline e trocamos uma ideia muito madura sobre o assunto. Ela me disse sentir-se desconfortável com a utilização do meu nome. Eu busquei entender mais sobre seus sentimentos através de uma conversa que durou horas. No fim ela disse que não me relatava a fim de me fazer mudar minha identidade artística, mas sim para eu saber com honestidade o que ela sentia. A partir daí essa questão foi a gota para transbordar diversas reflexões que eu já vinha traçado há algum tempo. Eu pensei que, independente do conceito que eu gostaria de trazer, ele jamais estaria sobreposto à realidade de uma pessoa. Após um tempo de reflexão decidi arriscar e modificar meu nome, por sentir que essa era minha responsabilidade diante da situação. Entrei em contato com a distribuidora digital, tirei meus trabalhos do ar, me ausentei das redes sociais e busquei inspiração para me reconstruir. Assim eu estaria me sentindo mais responsável comigo e com outras realidades ao meu redor. Neste momento começam diversos outros impulsos de mudança em diversos espectros do meu eu artístico, e com isso começa o processo de transformação que o EP visual conta.
Estesia foi um processo muito prazeroso de fazer. Não só pela equipe maravilhosa que eu tive comigo – aproveito pra mandar um salve pra Maclá, José Pedro Minho, Mariana Prado, João Fernando Chagas, Portela e o Alã Alvez que fazem parte das cabeças, né – da direção de cada área, mas também por ser algo que eu já vislumbrava há muito tempo. E por ser um trabalho de conclusão do curso de Cinema, é um fechamento/começo de novo ciclo não só em seu conceito, mas também na vida real para nós. Foi intenso, pois levantar grana para fazer um trampo independente como esse não foi fácil, foram noites e dias virados fazendo freelance de tudo que é coisa que tu pode imaginar. Isso falando por mim. Enquanto equipe nós também produzimos algumas festas em parceria com o nosso grande parceiro Galpão Satolep – um salve pro Manoval e o Rapha que foram grandes amigos nesse momento – para poder custear a produção. Então, foi um trabalho além da minha montação como drag e set de gravação. Foi um ano e meio de muita correria alinhando conceitos entre as equipes, correndo atrás de grana, incentivando as pessoas participantes e acreditando no projeto. É engraçado como Estesia se transformou ao longo do tempo junto com nossas transformações individuais.
– Haverá vídeos para as outras canções do EP, certo? Como ocorreu o planejamento para esse EP visual?
Sim, o ep visual Estesia conta com um clipe para cada faixa do ep musical. Estesia, Empurra, MQFDVC e POC POC POC, todas terão clipes. O processo de criação do EP visual aconteceu da forma como nós já vínhamos aprendendo a trampar com cinema e audiovisual, mas é importante ressaltar que ele é um processo de aprendizado. Nós estamos nos profissionalizando ao mesmo tempo que construímos o projeto. Aprendemos muito umas com as outras. É interessante como o ep visual foi construído muito ao mesmo tempo do ep musical. Nós gravamos com algumas músicas ainda não finalizadas, então cada cena pôde ser pensada juntamente da evolução sonora. Então digamos que nesse sentido o ep visual ganha uma linguagem diferente do videoclipe, que a imagem está disposta a acompanhar o som, aqui as duas coisas acontecem juntas. Mas a questão mais estrutural de planejamento, muito bem executada pelo José Pedro Minho e pelo João Fernando Chagas, foi intensa.
Primeiro eu apresentei o conceito e as letras para a equipe, conversamos e debatemos as possibilidades, logo cada direção criou seu conceito em cima das referências e pretensões que eu tinha. Em seguida a gente vai pra etapa mais prática, onde listamos material, fechamos orçamento e assim vamos atrás de captar essa grana. É aí que a gente trabalha dobrado, porque como nosso trabalho é independente, sem gravadora, sem produtora, sem estúdio, nós precisamos trabalhar em empregos informais (eu, por exemplo, já trabalho na minha vida pessoal em muitos deles para me manter na universidade) para conseguir levantar essa grana. Isso é mais um trabalho da produção, mas como é algo pessoal meu também, e porque já estou acostumado com o ritmo de trabalho, enquanto direção coloquei a mão na massa junto com os meninos. Após a captação começamos a organizar as gravações. Depois gravamos e entramos em processo de edição.
Uma pandemia no caminho
Nós terminamos de gravar a maior parte em fevereiro de 2020. Ainda faltava gravar o clipe de Empurra quando a pandemia foi anunciada em nosso país. Imediatamente suspendemos as gravações e lançamento, que era previsto para maio deste ano. Com isso entramos em um dilema de como faríamos para gravar, como iríamos concluir o projeto. A partir daí que tivemos a ideia de fazer um clipe inteiramente em animação, fica aqui um spoiler, em parceria com o Matheus Matos, das artes visuais da UFPel, que veio pra somar e muito no projeto. Nesse período de adiamento o projeto se transformou muito, o conceito amadureceu demais até chegarmos aqui. É massa visualizar como nosso trabalho envolve a Universidade no que diz respeito aos encontros e aprendizados, pra quem acha que lá só acontece balbúrdia, saibam que acontece pesquisa científica, ações sociais, produções artísticas maravilhosas e também conteúdo de entretenimento. Inclusive muitos clipes de artistas independentes no Brasil vem de produções universitárias, que contribuíram muito pra essa formação de uma cadeia de produção videoclíptica que não tinha essa dimensão que temos hoje. Enfim, foi e está sendo bastante trabalho!
Isso! Eu também assino roteiro, direção e montagem dos clipes. Nesse projeto divido a montagem de alguns clipes com a Valquíria Langone. Eu já trabalhava com videoclipe quando comecei a fazer drag e viver nessa posição do rap com o mic na mão. Mas eu comecei sim com videoclipe, no início para amigas que eram MCs, porque meu universo sempre foi mais pro Rap, mesmo que depois eu tenha explorado outros caminhos também. Eu aprendi muito experimentando com elas, e continuo trabalhando nessa área com outres artistas, inclusive tem um projeto aí com a Colíbrisa lindo pra sair.
Clipe de Canetaço lançado em dezembro passado
– Como é usar a música/arte como instrumentos de subversão? (no sentido que a sua música se choca contra a ordem social vigente e defendida por grupos que estão nos espaços institucionais na país)
Essa pergunta é muito delicada. Eu venho sentindo sentimentos a respeito disso agora. Quando eu comecei a lançar meus sons eu tinha poesias escritas, tinha letras escritas, e elas carregavam esse conteúdo político. Não só a política do afeto, a do corpo, mas também a estrutural brasileira. Não sou um grande conhecedor de política, mas procuro me manter informado e crítico às situações ao meu redor. Mas confesso que, por eu não ter pretensões de alcance quando lancei “Canetaço” por exemplo, eu não refleti bem sobre as consequências que sustentar um discurso contra a maré podia me trazer. Em “Empurra” a mesma coisa. Eu sabia que ia incomodar, mas não sabia como. É um processo intenso, poderia dizer que até denso e tenso, porque me machuca. Eu desmontado sou um homem branco, cisgênero e gay. Mesmo que eu ainda seja viado, e tenha passado por muitos processos de apagamento da minha identidade e sexualidade pela criação que eu tive, que ainda foi diferente de uma forte repressão, mas que foi galgada no ”seja gay mas seja HOMEM”, ainda tenho os privilégios de uma pessoa cis e branca. Mas quando o discurso da CASSI3 começou a sair da minha bolha, ir pra outros locais, as pessoas me enxergam apenas como aquele corpo drag queen, de bigode, que criticava às suas posições diante da sociedade. Uma imagem a ser detestada. De forma alguma isso se compara a vivência de outras pessoas em que a sociedade é muito mais rígida na cobrança de seus padrões DIARIAMENTE, mas isso marca quando eu saí totalmente da minha bolha, não só no meu espectro da sexualidade, mas de outros debates e fui enfrentar de forma mais cara a cara o posicionamento violento do conservadorismo brasileiro. Me assustou, não vou mentir. Fui ameaçada de morte, recebi mensagens, denúncias das minhas páginas, até hoje inclusive denunciam até conteúdos que não são vinculados à política estrutural, o que dificulta bastante meu trabalho de divulgação, mas enfim.
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Ouça EP musical: https://spoti.fi/3egFC81
Jornalista, estudante de História, obcecado por música. Conhece menos atalhos em seu computador que a sua gata.
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