Capítulo Final. O Limite (Confira aqui o Capitulo 1: O Jornal)
Ruy pousou a ficha vermelha na bancada de mármore. A garçonete lhe entregou a pequena xícara escaldada, preencheu o fundo com açúcar e aceitou que completasse com café puro. Seu estômago estava vazio, tinha fumado alguns cigarros para enganar a fome. Cogitou sentar e pedir algo para comer, havia mesas sobrando, no meio da tarde poucas pessoas circulavam pelo Café Aquários.
Na porta da esquina entrou um homem vestindo terno e gravata. Carregava a tiracolo uma bolsa estilo carteiro. Caminhou com certa graça até o caixa. Pegou a comanda e olhou para o balcão. Ruy o encarava com apatia. Não precisou se cumprimentarem para se reconhecerem. Guto chegou próximo ao jornalista e disse a seco:
— Vamos sentar.
Acomodados em uma mesa atrás da tabacaria, passaram alguns minutos apreensivos até tomarem iniciativa. Guto abraçava a pasta repousada sobre as pernas e olhava ao redor como se estudando o ambiente. Ruy pensava que havia se tornado o para-raios de uma situação extravagante, quando foi interpelado pela pergunta:
— Você pode me devolver a chave do atelier que aquela guria te deu?
Tirando um pequeno molho de chaves do bolso, pegou uma com detalhe verde e retirou do anel. Colocou-a sobre a mesa, olhou para Guto e disse:
— Acho que tu tens uma história pra me contar.
À vista das pessoas Antônio parecia uma pessoa feliz. Sua presença proporcionava ares responsáveis. Era uma pessoa que tinha conseguido relativo sucesso num campo de trabalho em que os profissionais mais se doam do que recebem. Viver como pintor em Pelotas necessita de algo mais que talento, junta-se uma quantidade de recursos, um sobrenome, e um querer ser artista. Mesmo com essas características a promessa é incerta. Antônio não tinha nenhuma delas.
Sua vida foi intensa nas atividades de desenho e pintura. Desde menino praticava com vigor promissor. Passando longas horas percorrendo o traçado de linhas e se sujando com a mistura das cores. Na faculdade mostrou um interesse legítimo por arte, se espantou com os mistérios da história, e sofreu o impacto da incompletude humana. Em seguida que começou a entrevistar alguns colegas para seu trabalho de conclusão, alguma coisa se desdobrou na sua personalidade.
— O que isso tudo tem haver com o tiro que ele levou — disse Ruy, sem paciência para a narrativa.
Guto o encarou com o canto do olho, esperou que o Ruy falasse mais alguma coisa, o jornalista respirou fundo e compreendeu que deveria ouvir. A garçonete se aproximou da mesa e serviu duas xícaras com café, anotou o número da comanda e se retirou. Os dois bebericaram um gole do líquido fumegante. Guto abriu a bolsa e apanhou um caderno em que na capa estampavam as cores amarelo, vermelho e azul.
— Neste caderno Antônio escreveu sobre boa parte dos acontecimentos dos seus últimos dois anos de vida.
Mesmo com uma carreira em curso, Antônio não se sentia realizado. No contato íntimo que teve com outros artistas na sua pesquisa, se surpreendeu com a desigualdade. Quem mais tinha aptidão não tinha recursos para investir no seu desenvolvimento artístico. Outros tinham recursos sobrando e pouco se dedicavam, encaravam o estudo da arte como um hobby de juventude. Dois caminhos que levavam ao mesmo lugar. A não atuação.
— Antônio pintou com toda sua vitalidade um trabalho pessimista, explicou Guto.
Ruy respirou fundo, soltou o ar com força e respondeu:
— Vai direto ao ponto, por favor.
Um trabalho que mostra as pessoas desistindo da arte não foi uma escolha, as histórias foram se organizando de acordo com o convite que o artista fazia aos colegas para retratá-los. As sessões de pintura levaram uma onda estética, sentimental e existencial. O sucesso da mostra foi principalmente por consequência da técnica, mas por trás havia uma condição melancólica, que atingiu fatalmente o artista.
— Antônio estava depressivo, tinha tudo e não conseguia sentir satisfação, disse Guto, grave e seguiu — Aquele tiro foi uma metáfora realista do que ele já tinha decidido. A arma era dele. Ele mesmo teria puxado o gatilho, o resto foi um acidente, espero que tu entendas.
Guto pegou o caderno e entregou nas mãos de Ruy:
— Vou deixar isso contigo, nesse diário tem tudo que tu precisas saber. Como tinha te falado, ele escreveu o que vinha sentindo e o que tinha decidido.
Ruy segurando o caderno fez um gesto para folheá-lo, Guto colocou a mão sobre a capa e foi firme:
— Leia depois, quando estiveres sozinho.
Após tomar o último gole de café, Guto falou que tinha algo mais para entregar ao jornalista. Abriu novamente a bolsa, remexeu como se procurando algo, retirou um revólver e com toda naturalidade o largou em cima da mesa. Seguiu remexendo na bolsa, em seguida retirou um envelope. Pegou a arma da mesa e guardou novamente da bolsa. Olhou para Ruy, que se mostrava um pouco impressionado. Entregou o envelope ao jornalista, já levantando-se da cadeira:
— Isso é para você, espero que compreenda o que diz do diário. Não me ligue nunca mais.
Encostado na cabeceira da cama, Ruy olhava para o céu através da janela aberta. Na noite passada, na mesma cama, procurava cativar a mulher que queria pegar da mão e chamar de sua. Agora, segurava um caderno escrito por um artista assassinado, não sabendo se realmente queria ler. O dinheiro havia o levado a uma trama perigosa, e sabia que o envelope repousado sobre a cama continha mais uma quantia. “Eu paro por aqui”, decidiu. Voltaria para o jornal no dia seguinte, inventaria uma história para o Medeiros, tudo ficaria bem. Porém, nada o impedia de ler o diário.
Era um caderno com miolo espiral. Contendo um número suficiente de folhas para escrever por um ano, talvez um pouco mais. Virou a capa, na primeira página havia o título: Cores Primárias. Folheou usando o polegar e abriu em uma página a esmo.
6 de junho de 2015
Fui fazer a primeira sessão para o retrato da Liz. Como ela tem um grande jardim na sua casa, ela decidiu posar na rua. Usamos como cenário uma poltrona que ela havia ganhado de sua avó. O dia estava com sol e com naturalidade ela ficou nua. Fizemos uma sessão de uma hora de esboços com carvão e paramos para conversar. A Liz largou a faculdade no final do semestre. Disse que estava enjoada das aulas e sua escultura não progredia no atelier do CA. Propus que fizéssemos uma sessão de fotos. Ela me levou até cozinha pois queria servir café. Não fez questão de se vestir…
Ruy não estava interessado na promiscuidade do artista e resolveu pular para o final do caderno:
19 de junho de 2016
Eu não sei o que faço. Me sinto preso dentro de um jogo sem lógica. Como se não existisse um final a ser alcançado. Nem sei se quero seguir pintando. Sônia esteve aqui no atelier hoje e falou que eu poderia voltar pra faculdade e fazer um mestrado, que talvez com uma rotina eu ganhasse autoestima. Não transamos, não tenho tido tesão por ninguém nem por nada. Do jeito dela ela deve gostar de mim, se não já havia terminado esse namoro de teatro barato. Amanhã de manhã tenho que trabalhar, tenho um retrato para entregar, preciso misturar as cores e começar a preencher. Falta fôlego. As contas então chegando, o dinheiro está acabando, tudo parece acabar, preciso falar com aquele cara.
15 de setembro de 2016
Não aguento mais ver esses quadros atirados nesse galpão. Não consigo mais pintar a tantos dias que acho que não volto a pintar nessa vida. Tudo está muito chato e sem gosto. Aquele veado do Guto disse que poderia me ajudar, mas se mandou, não o vejo a dias, ficou com medinho quando falei que tinha comprado uma arma e propus que fizéssemos o jogo da roleta: quem ganhasse beberia um copo de vodca, disse a ele. Quem perdesse, paciência. No começo ele levou na brincadeira. Agora mesmo eu manuseio o revólver com minha mãe esquerda. Espero que logo ele me seja útil. Mais útil do que me foram esses malditos pincéis. Arte é uma mentira íntima.
Era o discurso de suicida. Havia mais páginas, que poderiam revelar o que realmente aconteceu no dia da morte de Antônio, afinal, ele foi alvejado na rua. Ruy fechou o caderno e foi até o banheiro. Se olhou no espelho e viu um rosto rústico que precisava de sossego. Assim como médicos não se relacionam com pacientes, foi um erro ter procurado informações que não seriam transformadas em notícias. “Em um assassinato não há inocentes, todos são culpados”, lembrou.
O primeiro repórter a chegar na redação foi Ruy Fernandes: barba de uns três dias, cabelos desgrenhados, olheiras perpétuas de vinte anos de reportagem policial. Naquela hora da manhã apenas o pauteiro estava na redação, cumprimentou o jornalista rotineiramente, e seguiu organizando os assuntos do dia. Sentado em sua mesa, Ruy pensava em ligar para Cora e convidá-la para almoçar. O toque do telefone soou na sala, o pauteiro atendeu e foi anotando o recado. Gritou para o jornalista:
— Ruy, um corpo encontrado na praia do Laranjal.
— Mulher ou homem?
-=-=-=-
Leia: Cores Primárias – Capitulo 1 : O Jornal
Texto e foto: Lucian Brum – lucian.brum@ufpel.edu.br
_______________________
Folhetim – Apresentação:
O folhetim nasceu na França nos idos da primeira metade do séc. XIX, como uma estratégia de comunicação para conseguir fidelização dos leitores com o jornal diário, e consolidar a venda por assinatura. Todo dia o jornal publicava um capítulo da história, que girava em torno de temas cotidianos, e chamava atenção de leitores nobres, burgueses e assalariados. Ocorreu certa democratização da literatura, e se criou uma vitrine para escritores divulgarem seus nomes para um público mais abrangente que o das livrarias. Grandes obras foram publicadas no formato popular: Honoré de Balzac escreveu Ilusões Perdidas no jornal La Presse de Paris; Machado de Assis publicou Memórias Póstumas de Brás Cubas em edições da Revista Brasileira. Até os dias de hoje o estilo é o mais consumido nos meios de comunicação, no entanto, com o passar dos tempos, foi convergindo em radionovela, telenovela e atualmente chamamos de séries.
Acompanhe o folhetim Cores Primárias aqui no e-cult.
Capitulo 1 : O Jornal | Capítulo 2: Retrato | Capítulo 3: Retrato | Capítulo 4: Encontro | Capítulo 5: O Limite
Jornalista.
Faça um comentário