Um disparate. Apaixonar-se por uma menina. Justo ela que era uma menina. Nunca fora daquelas que brincavam de carrinho e juntava-se aos meninos para jogar pelada. Antes, gostava das bonecas todas, gostava tanto delas que as admirava de forma estranha; beijava-lhes a boca, chamava-lhes de princesa.
Era admirada pelos meninos. Era delicada. Era inteligente.
Sentia arrepios quando roçava sua boca nas outras bocas fêmeas de mesmo hálito e textura. Quanta tontura lhe dava quando percebia que embaixo das saias havia prazeres iguais aos seus, odores particularmente femininos. Andava a suspirar enquanto os seios cresciam e queria ver seios já prontos, seios da mãe, das irmãs mais velhas, das primas.
Shakespeare. Romeu e Julieta. Era a peça do colégio. O Romeu era bonito, mas tinha cheiro de homem. Cheiro forte, intenso. Homens não lêem, não pensam, homens não falam de delicadezas, não sabem pôr a mesa, nem entender os altos e baixos da mulher!
Romeu era todo teso, encorpado. Olhos verdes, o Romeu, e jogava bola como ninguém. Ele se envolveu. Ela brincou de ser mulher e tascou-lhe um beijo. Um beijo de hálito quente e forte, um dinossauro a invadir a caverna forte, a língua dele uma hélice que ia do sul para o norte, sem leveza, sem nada!
A ama logo a despertou da tentativa vã. Era ensaio. E neste ensaio a vida dela seguia na constatação do que queria ser. A ama já sabia o que ela “ainda” já queria!
O ator Romeu queria mais beijo. Os homens querem sempre mais e invadem sem pedir licença. Ela, tensa, tentou fugir e acabou fugindo de si mesma. A ama já era amada…
Os pais fazem gosto. Rapaz bonito. Bom nome. Bom porte. Família de boa conta bancária.
Tanta pressão, tanto disparate. O espetáculo estrearia e junto com ele a hierarquia jurássica: Romeu e Julieta!
– Quero tocar em tuas tetas – Ele falou numa ânsia decisória. Falou das coxias, tocando em seus seios e coxas que nada sentiram.
Troglodita Romeu! Ela não é vaca! Não tem tetas, tem seios! Ela não tem dúvidas, tem certeza de que ele, de que eles nada entendem do corpo misterioso da mulher.
A apresentação começa. Romeu se desdobra em versos românticos. Ela é atriz neste momento, mas ama a ama. Pode avistar os pais, de olhos lacrimejantes, pedintes daquilo que ela não é!
A peça que se exploda! Abandona a atriz! Shakespeare que se revire no túmulo! Shakespeare que se choque! Julieta larga Romeu e tasca um beijo na ama. Escândalo na plateia. Que se dane a plateia! Que se danem as donas e madonas de todas as igrejas e séculos.
A mãe e as irmãs choram. O pai balança a cabeça. Romeu se faz pequeno, os músculos não servem para mais nada!
Abandonam o teatro as duas. Famílias antagônicas na vida real. Ficção e realidade se misturam. Romeu que vá procurar outra Julieta. Ela e Ela… Vão enfrentar a fúria do convencionado. Elas não vão morrer, não! Não vão fugir da natureza. Não dirão “não” uma para a outra. As estrelas não serão castas estrelas. Não haverá veneno. Sem Montechios e Capulettos. Serão Julieta e Julieta.
Julieta e Julieta – Crônica por Charlie Rayné
Originalmente publicado no livro Memorial de Amor Inquieto
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