“Pai-de-Deus” traz texto denso e interpretações fortes (por Joice Lima)


Foto: Deco Rodrigues

Assisti a nova montagem de “Pai-de-Deus” na primeira apresentação da temporada em Pelotas, na terça-feira 5 de abril, na sede do Grupo Tholl – o espetáculo teve estreia em 10 de março, no Teatro Municipal de Rio Grande. Conhecia o texto de autoria do diretor rio-grandino, radicado em Pelotas há quase 69 anos, Valter Sobreiro Junior, mas era a primeira vez que o via encenado e fiquei muito feliz com o resultado. As sequelas deixadas pelos horrores da Ditadura brasileira não é um tema novo, mas o diferencial está na maneira em como é abordado, com uma trama psicológica densa, intrigante, tecida com pistas imprecisas e ambiguidades, de modo a manter o espectador enredado (e curioso) até o final.

A peça de cerca de 50 minutos se desenvolve em duas cenas consecutivas, costuradas com uma linha tênue entre memória e imaginação, protagonizadas por um homem que, quase cinco décadas antes, havia sido responsável pela tortura de dezenas de pessoas e, por isso mesmo, era conhecido pela alcunha de “Pai-de-Deus”. Nas duas cenas, ele recebe uma visita e acaba em um enfrentamento violento com o visitante. A genialidade da peça está na narrativa construída sob “dois textos simétricos, correspondentes, com a lógica da memória”, segundo o próprio Sobreiro. Nas duas cenas se repetem praticamente os mesmos diálogos, porém em situações diferentes e, muitas vezes, as falas são ditas pelo outro personagem, fazendo com que o espectador se pergunte, continuamente, se o que está vendo é realidade e está de fato acontecendo ou é lembrança calcada em fatos passados ou é, ainda, um misto de memórias e devaneios, recheados de miragens, de desejos… de loucura.

Foto: Deco Rodrigues

Com cenário e figurinos simples, o espetáculo traz apenas o essencial. Sob o palco, uma cama, uma mesinha de cabeceira, duas cadeiras, uma moldura que faz as vezes de porta e um tonel, que hora serve como pia de banheiro, ora se transforma em um artefato usado em um conhecido método de tortura da Ditadura: o afogamento.

O excelente texto de Sobreiro foi valorizado pelas atuações impecáveis de Joao Schmidt (Pai-de-Deus) e Germano Rusch (jovem/filho), que já na segunda sessão apresentaram um ritmo consolidado, sem necessidade de ajustes – o que seria normal para qualquer peça que acaba de estrear. Foi uma surpresa maravilhosa rever no palco o reconhecido produtor Joao Schmidt, um amigo querido, com quem contracenei na minha primeira peça, em 1986, dirigida por Sobreiro. Joao Schmidt retorna aos palcos em grande estilo, como um ator maduro, pronto. O jovem Germano, de 26 anos, integrante do Grupo Tholl – e que me recordou que fui sua primeira professora de teatro, suponho que em 2010; coisa boa saber que contribuí, de alguma forma, na formação desse rapaz que hoje se revela um ótimo ator! –, não ficou atrás. Germano tem uma presença cênica muito forte e se mostra inteiro na cena. Interpreta dois personagens completamente diferentes e, com sensibilidade, é capaz de nos despertar desconforto/raiva e pena/ternura.

Joao e Germano, que juntos também assinam a direção do espetáculo, aceitando alguns “pitacos” dos amigos João Bachilli, Sandra Viegas, Luis Amaral e do próprio Sobreiro, encontraram o tom perfeito, dosando momentos de violência, agressividade, fragilidade e doçura. Sem exageros, conseguem causar na plateia momentos de exasperação e de comoção.
Simbologia

Um telefone que não está plugado e o “barulho que vem da rua” que cessa de repente nos atentam que há algo de insano no ar. Na técnica, Fabrício Álvaro opera iluminação e som, que conta com algumas músicas originais de Sobreiro. Vídeos jornalísticos projetados na parede com momentos da Ditadura e o depoimento de uma mulher, vítima de tortura, dão um choque de realidade: teatro não é apenas fantasia.

Foto: Deco Rodrigues

Também tem a capacidade de reviver fantasmas reais. As rasantes dos morcegos, habitantes naturais do espaço, pareciam um complemento divino ao clima tétrico – os atores, concentrados e profissionais, pareciam nem notar. A moldura que representa uma porta, em cena o tempo todo, parece um código para todas as portas que vão sendo abertas durante o espetáculo, abrindo possibilidades de interpretação da plateia.

A peça inspira sentimentos contraditórios e provoca questionamentos. Pode um torturador frio e impiedoso ser um pai carinhoso, que sofre com a falta do filho? Há momentos em que quase esquecemos que se trata de um carrasco, em que chegamos a vê-lo no papel de vítima. Mas a confusão dura pouco… afinal, ele é vítima de quem? Seu algoz é o próprio remorso, personificado por sua mente doentia, evocado pelas recordações que o perseguem e atormentam.

Pai-de-Deus é um homem que vive assombrado pelo sentimento de culpa. Um homem que sabe ter destruído a vida do filho que tanto ama. Um filho que não teve estrutura para carregar a bagagem pesada demais dos atos monstruosos do pai, que recebeu de herança.

No ambiente intimista criado para uma plateia seleta de 40 pessoas, o espectador acompanha de perto a degradação de um homem atormentado pelas próprias memórias, em looping. Um homem martirizado pela ausência do perdão, inalcançável, que o impede de descansar. O espectador testemunha o torturador sendo torturado por seu passado, que volta sempre. Sempre. Cada dia.

Foi a primeira peça teatral que assisti em Pelotas, desde o início da pandemia do novo coronavírus e posso dizer que, ainda que adore um final feliz, saí de lá mexida, mas extasiada. Feliz com as escolhas, com o tratamento dado ao texto, com as brilhantes atuações. Tudo na medida certa. Teatro com T maiúsculo. Estão todos de parabéns.

Antes de se lançar por turnê em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, a peça terá apresentações para convidados e imprensa nas terças e quartas-feiras de abril, no palco intimista montado no CT Tholl.

Por: Joice Lima – Escritora, dramaturga, jornalista, atriz e diretora de teatro, graduada em Jornalismo pela UFSM e Teatro Licenciatura pela UFPel.

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