Elza Soares, disco do ano e cantora do milênio


Cantora lança disco de inéditas, englobando diferentes estilos musicais e, aos 60 anos de carreira, continua surpreendendo.

Muito tempo se passou desde que aquela menininha pobre, cujo vestido da mãe fora ajustado com alfinetes, de modo a bem servir em seu corpo singelo, se apresentou no programa do renomado músico brasileiro, Ary Barroso. Ao pisar no palco, gargalhadas tomaram conta do público. Vinham de todos os cantos, tamanho era o descrédito dos espectadores diante daquela pequena, porém notável caloura.

Elza em estúdio”O que você veio fazer aqui?”, pergunta Barroso. “Eu vim cantar!”, ela responde, já imprimindo sua personalidade forte e destemida. “E de que planeta você veio?”, retruca o apresentador. A resposta o deixou sem palavras. “ Do mesmo planeta que o senhor. O planeta fome”.

Sim! A noite foi dela. Aquela garota de infância sofrida, mas feliz quando o assunto era empinar pipas na rua e brincar com os meninos, obrigada pelo pai a casar aos 12 anos e mãe aos 13, surpreendeu o público que, poucos minutos atrás, estava rindo sem parar. O teatro só viria abaixo novamente através das palmas calorosas e incessantes da platéia indo ao delírio com o talento da cantora. Ovacionada por todos, nasce então uma grande estrela.

Naquela noite, Elza conseguiu ganhar não somente dinheiro para o remédio de seu filho, motivo pelo qual estava participando do programa, como também, sua versatilidade, presença de palco e voz inconfundível – roquidão característica atribuída, segundo ela, às suas primeiras aulas de canto com seu amigo louvadeus, sempre pendurado em sua orelha – despontaram sua arte para o país e a tornaram referência das gerações de ontem e de hoje.

Canto e Superação

Credito: Stephane Munnier / Divulgacao  - Cantora Elza Soares
Credito: Stephane Munnier / Divulgacao – Cantora Elza Soares

As apresentações eram cada vez mais numerosas e os admiradores também. Louis Armestrong que o diga. Ao ouvir Elza cantar, ficou fascinado. Reconheceu na cantora a sua versão feminina e passou a chamá-la de filha. Título que rendeu a ela uma viagem com o músico para a Argentina, onde ambos se apresentaram num grande festival internacional de música. Cada um representando seu país de origem. Aos 30 anos, iniciava a carreira internacional da intérprete de “Se Acaso Você Chegasse”, “Boato”, “A Carne” e tantos outros sucessos, que lhe renderam o título de maior cantora do milênio, pela BBC de Londres.

Elza é uma artista atemporal. Sabe como atrair os holofotes, ser o centro das atenções. Sua figura exótica, com feições felinas, olhos expressivos, sobrancelhas altas e arqueadas, um cabelo afro em tom avermelhado, enfeitado com flores ou turbantes, ostenta orgulhosamente a beleza da cor. Ela ganha o mundo com seu sorriso largo e musicalidade genial. Um clássico que não sucumbe à comodidade do tempo. Adaptando-se às novas gerações e aos novos mundos, seu talento é constantemente adaptado às expressões e linguagens de cada momento. Ela sabe se reinventar como poucos.

Entre altos e baixos, nem mesmo um casamento conturbado com o jogador de futebol Mané Garrincha, a perda de quatro filhos e algumas cirurgias na coluna, apagam a luz e energia de Elza Soares. A artista diz encontrar na música o seu combustível vital, um anestésico para a alma. O seu refúgio e inspiração. É cantando que ela se encontra e transforma sua dor em celebração e esperança.

“A música é a medicina da alma e quando você alimenta sua alma você fica mais forte (…) Eu sou uma pessoa muito simples, agora, quando eu quero as coisas, eu quero. A vida é assim, você vai buscar e tem que trazer”, diz a cantora em entrevista com a repórter María Martin, do portal de notícias “El País”.

A Tradução da Energia
Elza Soares aparece no show com cenário assinado por Anna TurraAos 78 anos de idade, a cantora surpreende mais uma vez, com seu primeiro disco inteiramente composto de músicas inéditas. Ultrapassando a marca de seis décadas de carreira, “A Mulher do Fim do Mundo”, seu 34º trabalho, conta com a participação dos músicos Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos, Felipe Roseno, Celso Sim e Rômulo Fróes, nomes conhecidos da cena paulista.

Nas onze faixas, compostas especialmente para a musa, gêneros como o samba, rock, rap e eletrônico, com arranjos sobrepostos por timbres arrojados, ruídos, distorções e dissonâncias, marcam presença em temáticas que discutem violência contra a mulher, transexualidade, negritude, sexo e morte.

Guilerme Kastrup, bateirista carioca, produtor e idealizador do álbum, elogia Elza Soares à jornalista Laura Fernandes, do site “Correio 24 Horas”. “A Elza é uma artista ousada. Os artistas se inspiram nela e a primeira coisa que vem em mente é a ousadia. Ela é instigante, não é acomodada. Está sempre com visão pra frente. Nada espanta ela.”

A sede pelo novo movimentando cada projeto da cantora, encontrou aliados perfeitos nessa turma de parceiros musicais. Uma atmosfera futurista paira no ar. O fim do mundo como cenário de uma Elza sobrevivente é evidenciado no caráter um tanto apocalíptico na letra das canções. Além disso, os recursos ousados e tecnológicos do disco fazem da obra uma das mais relevantes de 2015.

Na favela ou nas “quebradas”, muito além do caos instituído pela violência humana, também é lugar de recomeço. Das cinzas vem o renascimento, tal e qual uma Fênix, ave mitológica que poderia perfeitamente representar a incansável cantora em sua trajetória de muitas lutas e também grandes vitórias. “A mulher do fim do mundo é uma mulher guerreira, que enfrenta chuva, sol. Que não tem tempo ruim. Pra mim, nunca teve tempo ruim”, afirma.

Sem Papas na Lingua
25_MVG_rio_elzasLogo na primeira faixa do disco, “Coração do Mar”, um poema de Oswald de Andrade, abre caminhos em direção ao que está por vir. A história do navio negreiro apresenta uma terra imaginária, que ninguém conhece. Trata-se de uma crítica social, da resistência de um povo que sustentou com braço forte o desenvolvimento, a cultura e a identidade de um país. Para tanto, somente a voz marcante da cantora será ouvida, acapella. Na melodia naturalmente afinada, de um timbre metálico e, por vezes, rasgado, marca registrada da cantora, a mensagem de força e resistência aos poucos dá espaço ao quarteto de cordas, anunciando a próxima faixa do álbum.

“A Mulher do Fim do Mundo”, faixa-título do disco, é daquelas que dão arrepio. Impossível escutar sem se emocionar. Levar para o feeling logo no primeiro instante que inicia a tocar. “Na chuva de confetes deixo a minha dor / Na avenida deixei lá / A pele preta e a minha voz / Na avenida deixei lá / A minha fala, minha opinião / A minha casa, minha solidão / Joguei do alto do terceiro andar / Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida / Na avenida, dura até o fim / Mulher do fim do mundo / Eu sou – eu vou – até o fim cantar.”

Em “Maria da Vila Matilde”, drama e grito de liberdade. Distorções sonoras se misturam ao samba, rock e rap. Ilustram o momento em que a personagem decide dar um basta na violência sofrida pelas mãos do companheiro. Mais empoderada do que nunca e, ao mesmo tempo, bem humorada, no modo como retrata o agressor na canção, Elza diz, em entrevista: “Amor com pancada não existe. Mulher só deve gritar quando for de prazer”.

Nas cenas de periferia, tiroteio, ruas vazias e um Rio de Janeiro após o fim do mundo são revelados. Em “Luz Vermelha”. Rap e punk rock questionam o caminho pelo qual a humanidade se dirige e afirma provocante “o mundo vai terminar num poço cheio de merda.”

Meias palavras são dispensáveis. Elza é objetiva, vai direto ao ponto. Somente quem tem a propriedade de ter vivido muitas histórias, pode imprimir sua personalidade autentica, guerreira, dona de suas vontades e desejos. Uma mulher com m maiúsculo, que não se calou frente aos desafios que a vida lhe proporcionou.

Em “Pra Fuder”, sexo e desejo são tratados com a naturalidade que merecem pela diva. O corpo ardente, de peito em chamas, bota sua fera pra correr. Uma poesia repleta de detalhes. Mas engana-se quem pensa tratar-se unicamente de sexo. Para a TV Carta, Elza completa: “Pra Fuder não é só sobre cama, não. É a mulher que bota pra fuder de verdade”.

“Benedita” resiste. Traz no corpo todas as marcas da violência social e do preconceito sofrido pelo simples fato de ser quem é. De lutar pelo direito de ser a mulher que é. A transexual retratada por Elza, vive a beira do fim do caminho, entre paus e pedras. Ligada ao trafico, ela sobrevive, não se rende jamais. Ressurge soberana toda vez, em meio às guitarras e metais que contam sua história na canção.

Outros destaques do disco ficam por conta de “Firmeza?!”, um dueto com o autor Rodrigo Campos. A temática sobre angústia e fraternidade surge através de um diálogo leve e descontraído, repleto de gírias. Mais uma prova do quão jovem e contemporânea Elza pode ser.

No tango “Dança”, questões mais existenciais e espiritismo são tratados num lugar de onde nem mesmo a morte é capaz de calar a personagem que insiste em continuar. “Daria a minha vida a quem me desse o tempo / Soprava nesse vento a minha despedida / … / E se eu me levantar, ninguém vai saber / E o que me fez morrer, vai me fazer voltar”.

Um caminho solitário em “Solto”, a busca de algo como renascer, refletindo em “O Canal”, além do misto lamento, fé e esperança de “Comigo”, coroam, dentre outras, um álbum bonito, arrebatador, feito sob medida para essa mulher forte e determinada. “O novo álbum de Elza é fogo, é melancolia, é sofrimento e é liberdade, como há de ser o samba, como é Elza Soares, e como é a mulher brasileira”, define a musicista, Aria Rita.

Veterana porém atual. Anos de carreira, uma estrada longa e consolidada, mas com o frescor e inquietude dos primeiros tempos. A inovação de uma estrela sempre à luz da vanguarda musical contemporânea. Ela foi, ela é e sempre será. Elza é um show!

A Mulher do Fim do Mundo
Faixas:
01. Coração do Mar (Poema de Oswald de Andrade musicado por José Miguel Wisnik)
02. Mulher do Fim do Mundo (Romulo Fróes / Alice Coutinho)
03. Maria da Vila Matilde (Douglas Germano)
04. Luz Vermelha (Kiko Dinucci / Clima)
05. Pra Fuder (Kiko Dinucci)
06. Benedita (Celso Sim / Pepê Mata Machado / Joana Barossi / Fernanda Diamant) Part. Celso Sim
07. Firmeza?! (Rodrigo Campos) Part. Rodrigo Campos
08. Dança (Cacá Machado / Romulo Fróes) Part. Romulo Fróes
09. O Canal (Rodrigo Campos)
10. Solto (Marcel Cabral / Clima)
11. Comigo (Romulo Fróes / Alberto Tassinari)

Ficha Técnica:
Produção Musical: Guilherme Kastrup
Fotos: Alexandre Eça
Um Projeto Natura Musical

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*