Fazia calor naquela tarde de 27 de janeiro de 1921 nas ruas de Pelotas/RS quando três jovens trabalhadores procuraram uma sombra na praça da República para descansar.
Conversa vai, conversa vem, passaram a falar de carnaval, já que fevereiro estava logo ali. Acontece que, por serem negros, não eram aceitos na maioria dos cordões carnavalescos da cidade e não estavam muito satisfeitos com os cordões negros que já existiam. Decidiram, então, criar seu próprio grupo.
Animados, eles se dividiram para espalhar a ideia: enquanto dois deles foram contar a notícia em outros cantos, o terceiro ficou para ir dizendo para quem passasse pela praça. Foi assim que eles tiveram a ideia de criar o Fica Ahí Pra Ir Dizendo, clube cultural que completa seu centenário em 2021.
A história é contada pela doutora em História pela UFRGS Fernanda Oliveira na tese “As Lutas políticas nos clubes negros: culturas negras, racialização e cidadania na fronteira Brasil-Uruguai no pós-abolição (1860-1960)”, que fala sobre como, a partir de significados de existência e resistência, os clubes culturais negros no Brasil carregam a história de enfrentamento e continuidade desta luta.
Como explica a historiadora, no início do século 20, os clubes tinham uma forma de “se aquilombar com o objetivo de reunir afro-brasileiros que não galgavam os lugares de lazer e sociabilidade da elite branca.” Nestes espaços, existia a valorização de encontros e construções de cultura, que perpassam o passado e o presente por meio dos legados de ancestralidade. Além disso, também a forma de se organizar, de envolver-se e até mesmo se enxergar estão intrínsecos a este associativismo.
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Daniel Amaro, amigo associado do Fica Ahí, conta que desde criança faz parte do clube. “A grande maioria dos frequentadores eram alfaiates, sapateiros, profissões dos negros naquela época. Meu pai me levou desde os três anos ao clube. Então, falar do Fica Aí é falar de uma vivência preta. O clube servia como uma extensão da nossa casa, porque todos os domingos tinha almoço, ou sábado tinha baile de debutante ou reuniões durante a semana. Quarta-feira, eles inventavam um churrasco ou uma reunião. Os pais iam conversar e os filhos ficavam em outra parte do prédio”, relembra.
O Fica Ahí se formou a partir dos cordões carnavalescos, que por sua vez eram entendidos como associações. Foram uma forma de inserção e sobrevivência no período pós-abolição. Há estimativas determinadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE) que indicam que, em fins do século 19, Pelotas abrigava cerca de 10% da população negra da província, principalmente, por causa do trabalho análogo às charqueadas. A maioria dos grupos deste período teve duração efêmera. Contudo, o Fica Ahí se tornou uma exceção, pois a iniciativa concebida inicialmente para o carnaval perdurou e se tornou um Clube Social, cuja sede é tombada como bem cultural pelo IPHAE.
De grande importância para os povos negros pelotense e composto por trabalhadores da base da sociedade (marceneiros, carpinteiros, funcionários públicos, civis e militares), o clube faz parte da família e vida de muitos. Como forma de extensão de suas casas, os associados cresciam e se engajavam pela sobrevivência da instituição.
De cordão carnavalesco a clube cultural
No período entre os anos 1920 até o fim dos anos 1950, começaram a surgir as escolas de samba, época em que os cordões carnavalescos deixaram de ser a principal forma de associação negra. Em Pelotas, junto com o Fica Ahí, resistiam os cordões Depois da Chuva, Está tudo certo, Quem rir de nós tem paixão e o Chove não Molha. Segundo a historiadora Fernanda Oliveira, os clubes negros pelotenses concentravam setores diferentes da etnia.
Como conta a historiadora, no Quem ri de nós tem paixão, estavam os componentes mais pobres, enquanto o Chove Não molha era formado por trabalhadores vinculados ao setor de serviços. O clube mais antigo era o Depois da Chuva (fundado em 1917), no qual se reuniam os “cisqueiros”, como eram chamadas as pessoas de baixa condição social. E o Fica Ahí agruparia famílias de situação social mais estabelecida. Havia outros blocos de poucos registros como o Bloco Futurista, que não se delimitava aos sócios e era caracterizado por luxo e requinte das roupas.
Com o crescimento das escolas de samba, a década de 1950 seria crucial para o futuro da instituição. O ano de 1953 foi determinante para o Fica Ahí, já que sua identificação mudou de carnavalesco para “cultural”. Desta forma, o clube desenvolveu, a partir de então, projetos culturais e educacionais e sediou, mais tarde, a escola Dr. Francisco Simões. Para Amaro, construir uma escola pública para que os filhos dos sócios pudessem estudar foi uma grande sacada. “Eles tiveram que fazer uma parceria com a Secretaria da Educação do Estado. Não foi algo isolado, tiveram que organizar a documentação e se articular”, complementa.
O sócio acredita que essa história de resistência vem da origem do Fica Ahí, uma vez que eles eram um grupo muito organizado e ousado. Logo após a abolição conseguiram construir um clube e que se mantêm mesmo após anos. Para Fernanda Oliveira, “os clubes são braços do movimento social negro. Mas acontece que a gente tem um grande considerável investimento em alguns desses clubes que conseguiram se adequar, que desenvolveram projetos relacionados à cultura, inclusive o Fica Aí”.
A historiadora faz uma alerta para a necessidade de mais políticas públicas para que toda essa história não se perca. “Quando a gente tem a diminuição drástica das políticas públicas voltadas para esses espaços, após os governos do PT, sobretudo a partir de 2016, a gente vê uma decadência nesses espaços. Porque aí eles não contam mais com políticas públicas e nem com as associações, que ficam menores porque os clubes não oferecem mais aquilo que todo mundo está procurando”, diz.
Amaro lembra que a palavra que define o Fica Ahí para ele é resistência. “Ser preto no Brasil é uma coisa muito foda. E ser preto em Pelotas mais ainda. Essa ousadia que eu tenho de falar, quem me deu foi essa resistência, e a arte me ajudou muito. E hoje eu consigo perceber que a única palavra que importância do clube na minha vida é essa.”
Texto: Ester Caetano
Fotos: acervo/reprodução/Almanaque do Bicentenário de Pelotas
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Editor, gestor de conteúdo, fundador do ecult. Redator e pretenso escritor, autor do romance Três contra Todos. Produtor Cultural sempre que possível.
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