Tenho usado há algum tempo o mesmo surrado par de sapatos. Impermeável. Superconfortável e discreto Agarra-se aos pés com velcro e alma. Sem cadarços. Tá meio desbotado, o pobrezinho, mas ainda tem seu charme. Dia desses um engraxate me chamou na rua, convidando o ilustre à graxa. Agradeci. Insistiu que precisava de um brilho. Rebati que gostava dele assim. E daí? “Gasto” não se discute, brinquei. Ficou brabo o guri. Semana passada a surpresa: ganhei calçado novo. Sapatênis. Bonitinho. Eu não estava preparado. Protelaria um pouco mais um tal investimento, mas foi presente. Sabe como é, tem que usar. Era um número menor que o meu e precisava trocar. Foi, contudo, o velho calçado que me conduziu certeiro até a loja, no compasso de pegadas bem traçadas. Conhecedor dos caminhos, desviava de pedras e saliências em pilotagem automática. Arranhões e marcas no bico contam sua história de jornadas diárias de vai-e-vens. Casa-trabalho-casa. Meses a frio ou mormaço, fazendo chuva ou pó, vento ou calor, desempenhou sempre bem sua função a um passo diante do nariz pelas ruas de Pelotas. Receberá agora o descanso merecido, calejado de tanto me amaciar os pés. Deixarei somente para os dias feios de inverno, conservando melhor o novo par que o substitui.
A rigor, os sapatos nos protegem não apenas das intempéries. São verdadeiras armaduras. Nossos pés são frágeis. São reclusos. Tímidos, introvertidos. O pensamento não é profundo, eu sei. Talvez até rasteiro, porém com fundamento. Diga-me com quem andas… (pés sujos ou finos, unhas grandes ou aparadas) … e te dirão quem és. As mulheres expõem mais sua nudez descalça. Por isso se lixam, tiram nacos de peles, fazem unhas, tratam e pintam. Algumas põem até anéis nos dedinhos e tornozeleiras. O pé do homem é horroroso, diga-se de passagem. Tem mais é que esconder mesmo. O que desejo chutar aqui, entretanto, é o inconsciente que há na escolha do calçado. O tipo de pisante fala do pedestre. Social, despojado, caprichoso ou desleixado. Tênis de griffe, chinelas da estação, pantufas de pata de dragão apontam não apenas o estilo, assim como traços da personalidade do indivíduo. Não precisa olhar de cima a baixo para começar a conhecer alguém. Basta olhar diretamente pra baixo. E há um poder simbólico nos pés. Veja a força do coturno do militar. A leveza da sapatilha da bailarina. Os gaudérios honram suas botas e alpargatas. E os ripongas valorizam suas sandálias de couro cru. Os bem-nascidos não se importam de pagar os olhos da cara num tênis da moda. Já os menos favorecidos se sacrificam ao último para comprar imitações mal-feitas. Horrível e triste é vermos jovens roubando e até matando por um autêntico calçado da hora ou para sustentar o vício das pedras. Falta orientação. Valoriza-se a futilidade. É loucura. Sem pé nem cabeça. E o pior, ou melhor, é que tem muito calçado bom e barato disponível no comércio. Tem pra tudo que é gosto e tribo. De sapatos de camurça aos tenisinhos vermelhos ou xadrez da gurizada alternativa. É perneando que se acha. Tem que ir de de loja em loja, cabeça fria e descalço de preconceitos. Claro que mau-gosto não se diz “cult”. Sandálias com meias, por exemplo, deveriam estar nas proibições do decálogo. Enfim, inaugurei meu sapatênis novo. Sim, é confortável. Ainda tem que amaciar um pouco e aprender os caminhos dos calçadões de Satolep que trilharemos pelos próximos (e vários) meses.
*Márcio Ezequiel – Escritor e Historiador.
Mestre em História pela UFRGS. Estudou a Literatura de Viajantes no RS no século XIX. Publicou o livro: “Alfândega de Porto Alegre: 200 anos de História” em 2007. Atualmente dedica-se a narrativas breves: crônicas, contos e minicontos.
Blog: www.marcioezequiel.blogspot.com
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Editor, gestor de conteúdo, fundador do ecult. Redator e pretenso escritor, autor do romance Três contra Todos. Produtor Cultural sempre que possível.