Nos dias 07, 08 e 09 de setembro o público poderá conferir no Teatro Renascença uma lúdica montagem pernambucana do clássico de Nelson Rodrigues.
Após a apresentação do dia 09 haverá um debate acerca da obra de Nelson Rodrigues dentro do projeto Psicanalítica em cena. Serão abordadas questões sobre o teatro contemporâneo e a fabricação das celebridades instantâneas, a obra de arte e os meios de comunicação.
No corre-corre de um grande centro urbano, as pessoas parecem não notar umas as outras, mas um acidente no trânsito pode fazê-las interligadas por um breve momento. É o que acontece quando um anônimo atropelado ganha a atenção de inúmeros passantes. Não especificamente pela possibilidade da sua morte, que fatalmente acontece, mas pelo pedido inesperado que ele faz a um jovem que corre em seu socorro: um beijo, desejo prontamente atendido. A inusitada cena dos dois homens se beijando em meio ao caos da cidade grande é flagrada por dezenas de pessoas munidas de aparelhos celulares e o caso ganha repercussão imediata nas redes sociais.
Esta parcela de modernidade, com imagens compartilhadas em tempo quase real na Internet, não estava presente na obra original de Nelson Rodrigues, a peça “O Beijo no Asfalto”, escrita em 1961, mas faz parte da encenação pernambucana assinada pelo diretor Claudio Lira, que será apresentada no Porto Alegre em Cena. A montagem estreou no Rio de Janeiro em agosto de 2012, integrando o projeto “Nelson Brasil Rodrigues: 100 Anos do Anjo Pornográfico”, iniciativa da Funarte. Em seguida, foi apresentada em Recife, dentro do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos. Fomentada pela Funarte, a peça iniciou em maio sua turnê nacional. A peça foi apresentada em Natal, João Pessoa e Recife. Agora é a vez de Porto Alegre conferir esta montagem do clássico rodriguiano “O Beijo no Asfalto”. As apresentações acontecerão nos dias 07, 08 e 09 de setembro, no Teatro Renascença.
Esta versão de “O Beijo no Asfalto” que chega do Recife, terra natal de Nelson Rodrigues, respeita o texto original, mas não teme acrescentar detalhes contemporâneos à trama, como a referência às redes sociais e as inserções de imagens em vídeo, num paralelo ao imediatismo atual da mídia, suprimindo ainda todas as referências ao universo carioca. Tanto que a história passa a acontecer no centro de qualquer grande cidade. A trama mostra a reviravolta que acontece na vida do jovem Arandir, que socorre um desconhecido atropelado e, atendendo a um pedido deste à beira da morte, lhe dá um beijo na boca. Um repórter presencia o fato e vê no ato de um homem beijar outro homem a possibilidade de ganhar dinheiro. O caso ganha grande espaço na imprensa, sendo explorado com extrema crueldade tanto por jornalistas quanto por policiais sem ética e que não temem invadir a privacidade familiar.
A partir deste embaraçoso ato de misericórdia – um beijo na morte – presenciado por um repórter sensacionalista, um escândalo social se avoluma. Explorando o caso, Amado Ribeiro, o tal jornalista, e Cunha, um delegado corrupto, destroem a reputação de Arandir, um homem puro até então, e de sua família, levando todos a um desfecho trágico e surpreendente. A exploração da imprensa é tanta, que a história ganha outros contornos, retratando os dois homens como amantes em um crime passional. A partir daí, a vida do jovem se transforma num inferno e nem mesmo sua mulher, Selminha, acredita que ele é inocente, ainda mais diante das insinuações do pai dela, Aprígio, que sempre manteve o pé atrás com o genro. Há referências reais a toda esta história.
“A peça aborda algo que eu quero dizer e me incomoda muito: essa imprensa que manipula a opinião pública e, principalmente, o ranço preconceituoso que as pessoas mantêm até hoje. Não só na questão da homossexualidade, mas num âmbito mais geral”, diz o encenador Claudio Lira, que ressalta como grande qualidade da escrita rodriguiana esse revelar tão cru da hipocrisia na sociedade. Com “O Beijo no Asfalto”, Lira promove um retorno às suas origens no palco, ainda como ator. “No início da década de 1990, fiz um curso com Almir Rodrigues, grande ator e diretor, hoje afastado da cena por problemas de saúde, e passamos muito tempo estudando as obras de Federico García Lorca e Nelson Rodrigues. O objetivo era unir seus dois universos num espetáculo, mas o projeto não se concretizou. Em 2010, consegui encenar “Um Rito de Mães, Rosas e Sangue”, adaptação minha a partir das três tragédias rurais de Lorca, espetáculo ainda em atividade; e, agora, consigo mergulhar numa das obras de Nelson, o que é uma grande honra para mim, pois o considero um dos maiores dramaturgos do Brasil”, comemora.
Com vários outros trabalhos como encenador, em peças como “Alheio”, “Versos do Nós” e “Maçã Caramelada”, Claudio Lira diz que teve muita dificuldade em construir as cenas mais violentas propostas por Nelson – há embates terríveis entre Arandir e seus opositores – e, como traço de sua própria personalidade, resolveu dar à montagem um caráter mais clássico e psicológico, tanto que incorporou um inédito coro uníssono ao desenrolar da história, com personagens que usam máscara neutra sem personalidade individual e mais coletiva, numa áurea mítica, sensorial e, por que não, poética. Tais figuras, vestidas com ternos, funcionam como um bloco de gente que, se não comenta a ação verbalmente, como na tragédia grega, acompanha o desenrolar dos acontecimentos enquanto presença crítica e, por vezes, participativa. Assim como a sociedade que rumina opiniões, muitas vezes clandestinamente nas redes sociais. São figuras sem identidade revelada, mas prontas para julgar fatos e pessoas.
Originalmente, toda a história acontece durante um dia e meio, portanto, as cenas desenrolam-se como quadros de um videoclipe, em sucessão vertiginosa, pontuada por trilha sonora que mescla sons urbanos a melodias originais, concebida por Adriana Milet, e inserções de vídeo da videomaker Tuca Siqueira. A iluminação é assinada por Luciana Raposo e o cenário, figurinos e adereços pela dupla Claudio Lira e Andrêzza Alves. A produção executiva é de Andrêzza Alves e Renata Phaelante. “É esta sobreposição de elementos cênicos – dos figurinos masculinizados, das projeções em vídeo, da trilha musical quase constante, da luz forte que nos remete aos cortes cinematográficos e ao cenário composto por várias portas giratórias em 360 graus – que me interessa ao contar esta história, algo que eu quero dizer, tendo como molho o sarcasmo presente em Nelson ao tirar chacota da sociedade”, complementa o encenador.
Sobre o protagonista, Claudio define: “Arandir é um personagem tão comprometido por sua ação que duvida até mesmo da sua verdade. Portanto, assim como Nelson, eu trabalho em cima da dúvida – O beijo de Arandir no atropelado é a substância dessa dúvida – e a verdade, neste caso, pode ser forjada por qualquer um, como o faz a mídia, ao transformar notícias deturpadas em verdades absolutas, infelizmente. Este é o caráter desta tragédia brasileira, deste homem acuado que duvida até de si mesmo”, conclui. No elenco, Arthur Canavarro (Arandir), Andrêzza Alves (Selminha), Eduardo Japiassu (Aprígio), Ivo Barreto (Amado Ribeiro), Pascoal Filizola (Delegado Cunha), Sandra Rino (Viúva, D. Judith e Aruba), Daniela Travassos (Dália) e Lano de Lins (Barros, Werneck e um personagem surpresa ao final). Ainda há a participação das atrizes Cira Ramos, Clenira Melo, Vanda Phaelante, Renata Phaelante, Márcia Cruz e Sônia Bierbard, que mostram-se “virtualmente” na peça, numa homenagem a todas as atrizes pernambucanas, como opção do diretor, com falas da personagem Matilde, vizinha fofoqueira que acompanha o drama de Arandir, além dos comunicadores Gino César e Cardinot, este um símbolo da popularíssima imprensa pernambucana.
OBS: “O Beijo no Asfalto” foi escrita especialmente para o Teatro dos Sete, com estreia no mesmo ano de 1961, no Rio de Janeiro, sob direção de Gianni Ratto e com Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Sérgio Britto e Ítalo Rossi no elenco, entre outros. A peça teve ainda duas versões cinematográficas, a primeira em 1963, com direção de Flávio Tambellini e com Reginaldo Faria, Norma Blum, Xandó Batista e Jorge Dória nos papeis centrais; e outra em 1981, com direção de Bruno Barreto e elenco composto por Ney Latorraca, Tarcísio Meira, Christiane Torloni e Daniel Filho, entre outros.
FICHA TÉCNICA O BEIJO NO ASFALTO
Direção: Claudio Lira | Elenco: Andrêzza Alves, Arthur Canavarro, Daniela Travassos, Eduardo Japiassú, Ivo Barreto, Lano de Lins, Pascoal Filizola e Sandra Rino | Participações em Vídeo: Cardinot, Clenira de Melo, Cira Ramos, Márcia Cruz, Renata Phaelante, Sônia Bierbard e Vanda Phaelante | Voz da Locução: Gino Cesar | Música Final / Voz: Lêda Oliveira e Pianista: Artur Fabiano | Direção de vídeo cenário: Tuca Siqueira | Iluminação: Luciana Raposo | Cenário: Claudio Lira | Figurinos: Andrêzza Alves e Claudio Lira | Direção Musical e Preparação Vocal: Adriana Milet | Preparação Física e Coreografias: Sandra Rino | Fotografias: Caio Franco e Américo Nunes | Programação Visual: Claudio Lira | Produção Executiva: Renata Phaelante e Andrêzza Alves | Imprensa: Moretti Cultura e Comunicação |
SERVIÇO:
Onde: Teatro Renascença
Quando: 07, 08 e 09 de setembro
Endereço: Av. Érico Veríssimo, 307)
Ingressos: R$ 40,00 (Inteira) e R$ 20,00 (meia entrada)
Duração: 1h 30m | censura 16 anos.
Debate: Após a apresentação do dia 09 haverá um debate acerca da obra de Nelson Rodrigues dentro do projeto Psicanalítica em cena. Serão abordadas questões sobre o teatro contemporâneo e a fabricação das celebridades instantâneas, a obra de arte e os meios de comunicação.
Por: André Moretti
Editor, gestor de conteúdo, fundador do ecult. Redator e pretenso escritor, autor do romance Três contra Todos. Produtor Cultural sempre que possível.