A Miss mudou


A cultura machista é secular e universal. Acomete por gerações sociedades do mundo todo e fomenta, em diferentes esferas da vida pública e privada, um padrão de estrutura social em que há desigualdade de poder entre homens e mulheres, na medida em que aqueles são privilegiados e essas oprimidas. A reprodução do machismo pode ser escrachada, como a agressão física e os casos de violência doméstica contra a mulher, e também sutil, tal como a cartilha invisível da feminilidade construída como o esperado de mulheres “adequadas” e “validadas”.

Em poucos meses desse ano, os dados já alarmam os brasileiros à face escrachada e agressiva da opressão machista: de acordo com um levantamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), entre janeiro e fevereiro 126 mulheres foram mortas no Brasil e 67 tentativas de feminicídio foram registradas.

Ainda assim, essa materialidade não acua a força da mulher e dos movimentos feministas, nem deve suscitar a hipótese  simplista de que a igualdade de gênero não avançou  nos últimos anos, pelo contrário. E é principalmente nas nuances sutis e subjetivas das relações sociais que se percebe o empoderamento feminino, a mulher contemporânea mais dona de si e o gradativo aumento do número de seus cargos, prêmios e lugares de destaque,  historicamente ocupado por homens.

Prova disso foi o Oscar também desse ano, que entregou mais estatuetas para mulheres do que outra edição na história da premiação. Até então, o recorde era de 12 vencedoras, em 2007, e em 2019, de acordo com o “The Wrap”, 15 estatuetas  foram para mulheres.

Mas meses antes disso, um caso bem mais próximo a mim do que o Oscar,  já me alertava sobre isso.

Seguindo as últimas notícias do Miss Rio Grande do Sul 2018, um espaço que historicamente reproduz os padrões opressivos de feminilidade, acompanhei a finalista Miss Pelotas, Laura Kerstner, nas redes sociais. Laura é, sem dúvidas, fisicamente linda. Alta, magra e meiga, lembra um pouco a modelo gaúcha Alessandra Ambrósio e atende ao padrão estético historicamente exigido das mulheres. Dado o que já acompanhei em todas as outras edições do concurso, eu não esperava mais do que isso da Miss Pelotas, nem das outras candidatas. Comecei a seguí-la no Instagram por curiosidade e por bairrismo, torcia mesmo para que a Cidade das Misses saísse vitoriosa.

Porém, o dia a dia da Laura ali na rede mostrava algo a mais do que isso. Ela produzia suas próprias roupas durante todo o concurso, fazia postagens sobre sua marca de roupa e revelava a face empreendedora, pronunciava-se sobre o rompimento da barragem de Brumadinho e sobre o feminismo, levantava a causa do consumo consciente e, para concluir com excelência sua coroação de Miss do seu tempo, a pelotense de 22 anos colou grau em Engenharia Hídrica, pela Universidade Federal de Pelotas, na noite anterior às etapas finais do concurso.

Laura não venceu o concurso estadual, mas saiu dele com o diploma de engenheira na mão. Sob uma faixa que historicamente carregou o prêmio da beleza dócil e frágil e o estigma da futilidade,  Laura subverteu os padrões opressores da feminilidade e confirmou a hipótese de que o empoderamento feminino é uma realidade irreversível até mesmo para os lugares  tradicionais de destaque na sociedade.

Feliz com tudo isso, eu achei um lugar na agenda da Miss-Engenheira-Empreendedora. Confere um pouco da nossa conversa.

Laura, como surgiu a iniciativa de ser Miss Pelotas ?

Eu passei na seletiva no Shopping Pelotas, em setembro de 2018. A partir daí começou a preparação, com aula de oratória e passarela. Do corpo e da alimentação eeu sempre cuidei, com exercícios físicos e yoga, com foco na saúde. Ser Miss nunca foi para mim como um sonho de infância, foi algo que aconteceu bem em cima da hora.

Eu acompanhei um pouco nas redes sociais sobre a tua formatura na graduação. Foi bem no meio do concurso… Como foi essa loucura ?

A formatura foi no sábado, terminou por volta das 4 da manhã e às 6 eu já estava indo para Porto Alegre, para os editoriais da final que ia acontecer no domingo. Aliás, com a mesma produção da formatura. Me formei em engenharia hídrica pela Universidade Federal de Pelotas e aí surgiu a relação dela com a bandeira da sustentabilidade.

Podes falar um pouco sobre essa tua relação com a bandeira ?

Eu aplico a sustentabilidade no cotidiado. A começar pela minha dieta, que é vegetariana. Procuro produzir o mínimo de resíduo possível nos hábitos de consumo.  eu sei que tenho muito a evoluir e aprender, é um caminho construído no dia a dia e eu espero estar nele por muito tempo.

Tu acreditas que o concurso Miss Rio Grande do Sul, embora ainda reforce padrões estéticos, tem fomentado o empoderamento feminino ?

O Miss tem acompanhado essas mudanças na sociedade, com as mulheres mais empoderadas e conquistando melhor seu lugar de igualdade. O próprio concurso, desde que foi assumido pela marca Be Emotion, tem buscado um perfil mais clean, de mulheres menos produzidas, mais naturais, para valorizar as candidatas como elas são.

Tu tens uma marca de roupas… Podes contar sobre esse projeto ?

Eu sou uma grande entusiasta no mundo da moda. A marca prega o sob medida, a moda feita de acordo com o corpo da pessoa. Eu uso o método de modelagem moulage, em que a roupa é construída no corpo da pessoa, para que a roupa se adeque à pessoa e não o contrário. Eu trabalho com o slow fashion, o contrário da produção em larga escala, com moda artesanal em que é legal não só para o consumidor em que as roupas são exclusivas, mas também para o trabalho que tem melhrores condições. Além disso, polui menos.

E os teus projetos pós-Miss Rio Grande do Sul ?

Meu principal projeto é tocar a marca, fazer roupas. Aliás,  já estou cheia de pedidos das colegas do concurso que viram minhas produções e gostaram. Além disso, pretendo exercer minha profissão de  engenheira. Já enviei currículos, inclusive (risos).  Tenho vontade também em projetos de engenharia com ênfase na parte administrativa e financeira, porque trago essa bagagem da graduação. Com alguns colega, eu criei a primeira empresa júnior de engenharia hídrica do Brasil e fui diretora do setor administrativo. Aí desenvolvi esse interesse e até decidi aplicar numa marca, unindo o hobby da moda ao que aprendi ali na parte financeira da empresa.

 

 

 

 

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