Juliana Rodrighiero estava na sala da sua casa no dia 15 de abril de 2019. Assim como milhões de pessoas, sentia-se abalada com as imagens que via na televisão. Na época, aluna do doutorado em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas, já havia realizado trabalhos e pesquisas sobre arquitetura gótica. Por um momento, experimentou um sentimento de frustração, pensando que não conseguiria conhecer a catedral gótica mais famosa do mundo. Em uma transmissão ao vivo, a televisão mostrava as imagens da Catedral de Notre-Dame de Paris ardendo em chamas.
O incêndio em um símbolo da história da humanidade causou comoção mundial. Paris é uma dessas cidades em que você dobra uma esquina e se depara com um monumento milenar. A Catedral de Notre-Dame foi construída entre os anos de 1163 e 1345, ou seja, um edifício com 862 anos de idade. Era esse patrimônio que Juliana Rodrighiero temia não conseguir conhecer. Mas, como muitas coisas na vida são imprevisíveis, o destino iria fazer das suas.
Encontrei Juliana numa manhã quente — e úmida — do verão pelotense. Ela chegou segurando uma garrafinha de tampa verde, com água gelada. Vestia uma blusa de poá branca com bolinhas pretas, que harmonizava com seu rosto claro e os cabelos longos e castanhos. No pulso direito, um relógio com motivo da Torre Eiffel na pulseira e no mostrador, revelava um ícone da cidade que formou parte da sua identidade. Sentados no Pátio 2 do Mercado Central, conversamos sobre a participação social nos processos de restauração, políticas públicas de preservação e, claro, sobre Paris.
Lucian Brum: Como surgiu o seu interesse pela profissão de conservação e restauração?
Juliana Rodrighiero: O meu interesse pela conservação e restauro surgiu quando eu estava no curso Técnico em Edificações, no Instituto Federal Sul-rio-grandense. Era quase uma tendência natural as pessoas terminarem o curso de Edificações e seguirem para a área da engenharia ou da arquitetura. Lembro que houve um trabalho desenvolvido no curso, na época do Projeto Monumenta, em que foi promovida uma ação com a participação de restauradores da Itália, justamente na época em que estavam sendo restaurados os casarões aqui do Centro Histórico. Quando vi toda aquela dinâmica de fazer restauro, me interessei bastante e fiquei muito curiosa. Mas foi algo momentâneo, que achei muito interessante, mas não dei seguimento. Quando me formei em Edificações e postulei para o SISU, não havia a opção do curso de Arquitetura, porque me formei no meio do ano, e Arquitetura só abria no fim do ano. Foi quando conheci o curso de Conservação e Restauração, pesquisei sobre ele, achei superinteressante e ingressei. Nos primeiros meses, fiquei meio em dúvida, pensando: será que é isso que eu quero fazer? Será que não é? Lembro que até insisti em fazer Arquitetura, e com a minha nota no ENEM, poderia ter ingressado no fim do ano, mas decidi não postular, porque já estava apaixonada pela conservação e restauração.
Lucian Brum: Como foi a sua experiência no curso de Conservação e Restauração na UFPEL? Você sente que ele proporcionou uma base técnica sólida para atuar na área?
Juliana Rodrighiero: Conservação e Restauração é um curso apaixonante. Digo isso porque entrei sem grandes expectativas, ainda pensando em cursar Arquitetura. Mas, quando conheci toda aquela amplitude de materiais, técnicas e possibilidades, foi isso que me incentivou a permanecer. Tivemos disciplinas muito completas, e eu peguei um período do curso em que estávamos desenvolvendo técnicas bastante inovadoras. Aprendi a lidar com materiais como pedra, papel, pinturas, madeiras, elementos arqueológicos… Realmente, foi uma formação bastante completa. Logo no início do curso, tive a disciplina de Memória e Patrimônio, ministrada por uma professora que falava bastante sobre a França, sobre a história da Revolução Francesa, que foi uma referência importante para a consolidação do conceito de patrimônio e para a implementação de políticas públicas nessa área. Isso começou a despertar em mim um grande interesse pela França.
Lucian Brum: Tu lembras de algum trabalho realizado durante a faculdade que tenha permitido aplicar técnicas aprendidas em sala de aula e que tenha trazido um impacto significativo em termos de compreensão do papel do conservador e restaurador?
Juliana Rodrighiero: Acho que foi quando restaurei um móvel do Museu da Baronesa. Estávamos na disciplina de Conservação e Restauração de Madeira, e, naquele período, desenvolvíamos atividades interiorizadas no curso. Quando tivemos a possibilidade de trabalhar com um acervo do Museu da Baronesa, foi uma das primeiras oportunidades de ampliar nossas ações para a parte de extensão. Minha turma ficou responsável pela restauração de vários objetos do museu, e, no meu caso, trabalhei na restauração de uma cadeira, em um grupo com outras duas colegas. Era uma cadeira no estilo barroco-rococó, doada pelo Ribas Maciel, bastante interessante. Realizamos todo o processo: pesquisa, exames, proposição de restauro e intervenção. Ainda publicamos um artigo sobre o projeto. Foi a primeira ação que tive dentro do curso, que conectou o aprendizado de conservação e restauração num trabalho voltado para a comunidade. Inclusive, sempre que visito o Museu da Baronesa, faço questão de olhar a cadeira para ver como ela está.
Lucian Brum: Vamos avançar um pouco então… Em que momento da sua trajetória acadêmica tu foi morar em Paris? Que formação e experiências você já havia adquirido até então, e como isso influenciou a decisão de buscar novas oportunidades na França?
Juliana Rodrighiero: Fiz a graduação no curso de Conservação e Restauração. Depois, fiz mestrado em Arquitetura e Urbanismo, onde continuei trabalhando o tema: Descaracterização do Patrimônio Arquitetônico Eclético de Pelotas. Ingressei no doutorado em 2019, em Memória Social e Patrimônio Cultural, onde comecei a trabalhar com o conceito de Restauração Participativa [os três cursados na UFPEL]. No meio do doutorado, fui contemplada com uma bolsa sanduíche na área de Antropologia, para ser desenvolvida na Universidade de Borgonha, na cidade de Dijon, na França. Após esse período em Dijon, consegui desenvolver um acordo de dupla-titulação internacional de tese. Assim, obtive dois títulos de doutorado: em Antropologia, pela Universidade de Borgonha; e em Memória Social e Patrimônio Cultural, pela UFPEL. Quando fui para Paris, peguei um período de covid e confinamento, o que atrapalhou um pouco as minhas pesquisas. Acabei, então, prorrogando um pouco a minha estadia para finalizar a análise de dados, entrevistas e pesquisas bibliográficas das teses. Foi nesse momento que surgiu a oportunidade de ingressar no mercado de trabalho. Postulei para o Atelier Mériquet-Carrère e fui contratada para trabalhar como restauradora de pintura mural e decorativa.
“Quando eu entrei lá dentro, foi um sentimento de gratidão. Fazendo o processo de higienização, a gente conseguia remover aquela fuligem, aquela camada preta, e vinha aquelas cores, aquelas estrelas douradas’’
Lucian Brum: Como foi para você começar a trabalhar na restauração da Catedral de Notre-Dame, mesmo após o incêndio que a danificou tão gravemente? Você já tinha a expectativa ou o desejo de participar de um projeto tão grandioso, em um patrimônio reconhecido mundialmente?
Juliana Rodrighiero: Quando eu tive a oportunidade de entrar na Notre-Dame foi muito impactante. Lembro que eu estava na sala da minha casa quando houve o processo de incêndio. No curso de conservação e restauro, na disciplina de Iconologia e Iconografia, eu fiz um trabalho sobre a Notre-Dame de Amiens. Sempre gostei muito da arquitetura gótica. Quando eu vi aquele incêndio eu pensei: meu Deus, será que eu não vou ter a oportunidade de conhecer a Notre-Dame? Então, quando eu entrei lá dentro, foi um sentimento de gratidão. Fazendo o processo de higienização, a gente conseguia remover aquela fuligem, aquela camada preta, e vinha aquelas cores, aquelas estrelas douradas. Quando terminou o processo de restauração, foram retirados os andaimes, e a gente conseguiu ver o trabalho como um todo, também foi um momento muito impactante. Eu lembrava exatamente cada parte que eu tinha feito a reintegração, onde eu tinha feito higienização, consolidação. Eu olhava e sabia exatamente onde eu tinha feito cada intervenção. Foi tudo muito impactante e gratificante.
“Estar refletindo sozinha, tomando decisões de intervenções em um monumento que é referência para a humanidade, foi o momento mais desafiador’’
Lucian Brum: Quais áreas específicas da Catedral de Notre-Dame você teve a oportunidade de trabalhar durante o projeto de restauração? Houve alguma parte do trabalho que apresentou desafios técnicos ou emocionais, seja pelo estado do patrimônio após o incêndio ou pela complexidade das técnicas utilizadas?
Juliana Rodrighiero: Eu trabalhei na restauração da Capela Porte-Rouge, na Capela Saint-Germain e na finalização da restauração dos móveis da sacristia. Na restauração das capelas, havia vários ateliês que estavam trabalhando juntos. O trabalho era feito por missões. Então, fazíamos missões de três, quatro meses e interrompíamos. Aguardávamos a avaliação do comitê científico e, depois, retornávamos. Quando fui trabalhar na Notre-Dame, já tinha uma experiência de trabalho em monumentos históricos franceses e estava muito confiante. Sentia-me segura pela confiança que o ateliê havia depositado em mim. Quando postulei para esse ateliê, havia francesas que estavam competindo comigo, e fui selecionada porque tinha o embasamento teórico e técnico para estar trabalhando. Acredito que os momentos mais desafiadores eram quando trabalhava sozinha. Estar refletindo sozinha, tomando decisões de intervenções em um monumento que é referência para a humanidade, foi o momento mais desafiador.
Lucian Brum: Como era a tua rotina em Paris? Em qual bairro tu moravas e o que mais gostava de fazer na cidade?
Juliana Rodrighiero: Eu morava em Montmartre, perto da Sacré-Cœur, que é a Basílica do Sagrado Coração. É um bairro super vivo, super festivo, e, quando fui para Paris, me apaixonei, porque é conhecido como o bairro dos artistas. Um bairro que, se você lê livros de autores como Hemingway, Bukowski, Fitzgerald, todos eles falam de Montmartre. Eu me sentia super em casa. No meu primeiro ano em Paris, eu ainda estava escrevendo a tese de doutorado. Então, a minha dinâmica era ir para o trabalho, das oito e meia da manhã até às cinco horas da tarde. Trabalhava o dia inteiro em monumentos históricos e, quando chegava em casa, voltava a trabalhar no meu doutorado. Nos fins de semana, eu pegava o meu computador e ia estudar nos cafés. Sair por Paris era sempre um sonho. Caminhando, eu olhava os monumentos, os edifícios extremamente bem preservados, os turistas tirando fotos, as pessoas comentando. Isso me dava inspiração e surgiam as ideias. Eu sentava em um café e seguia escrevendo a minha tese.
Lucian Brum: E fora do trabalho e das atividades acadêmicas, havia alguma atividade que você costumava fazer no tempo livre?
Juliana Rodrighiero: Tem uma coisa que é muito interessante, que a gente não tem aqui no Brasil, que é a proximidade das pessoas com a arte. Os museus são de fácil acesso, por mais que tenham muitos turistas, é muito fácil ir aos museus de Paris. Eu via muitos estudantes de arte dentro dos museus desenhando réplicas. Turmas inteiras, que os professores levavam, com alunos fazendo desenhos de observação, desenhos de artes, reproduções de quadros. Eu acho muito interessante toda essa dinâmica viva de museus e de cultura que Paris proporciona.
“Os casarões ecléticos de Pelotas têm uma certa inspiração nos casarões franceses. A diferença é que temos pouco em termos de políticas públicas de preservação’’
Lucian Brum: Mesmo com essa diferença cultural, existe algo no aspecto arquitetônico que você enxergue como semelhança entre Pelotas e Paris?
Juliana Rodrighiero: Sabemos que a nossa cultura tem um embasamento europeu bastante forte. Os casarões ecléticos de Pelotas têm uma certa inspiração nos casarões franceses. A diferença é que temos pouco em termos de políticas públicas de preservação. Lá na França eles são muito rígidos em termos de políticas públicas de preservação. Eles têm uma lei bastante restrita em termos de intervenção em monumentos históricos, por isso a gente chega e vê os imóveis muito bem preservados. Aqui em Pelotas é outro contexto, é outro país, são outras políticas, mas a gente consegue observar semelhanças em alguns monumentos. Aquele prédio do Banco Pelotense, para mim, é um dos prédios mais bonitos de Pelotas. É uma pena que ele ainda não tenha passado pelo processo de restauração. De vez em quando, quando eu passeava por Paris, notava detalhes que me faziam pensar: isso lembra Pelotas.
Lucian Brum: Tu comentou que estás escrevendo um livro, poderia falar um pouco sobre ele?
Juliana Rodrighiero: O livro é resultado da minha tese de doutorado, em que trabalhei com a participação social nos processos de restauração. Eu procuro construir uma maneira metodológica para incentivar e orientar diretores, organizadores, enfim, profissionais da área sobre como inserir a comunidade para trabalhar em prol da restauração do patrimônio cultural. Porque, no momento em que falamos de patrimônio cultural, falamos de toda uma questão de pertencimento; as pessoas precisam se engajar. Eu acredito que essa vontade de participar tem que partir dos dois lados: dos gestores, que precisam organizar uma metodologia, e da comunidade, que precisa se sentir atraída e à vontade para atuar nessa preservação.
Lucian Brum: O que você vai levar para a sua vida dessas experiências marcantes, como estudar no exterior e trabalhar em um monumento tão significativo como a Notre-Dame?
Juliana Rodrighiero: Acredito que a França sempre fará parte da minha trajetória. Ela representa um amadurecimento profissional, acadêmico e pessoal também, porque fui para um outro país onde não conhecia absolutamente ninguém. Aprendi toda uma cultura, uma língua nova. Me consolidei, trabalhei profissionalmente e consegui deixar a minha marca. O impacto é justamente esse, de ter tido a oportunidade e valorizado as oportunidades. Sinto que tudo valeu a pena. Todo esforço, porque sabemos que essa vida acadêmica não é fácil. Quando estava em Paris, eu estava completamente focada no meu trabalho e na minha tese. Estava muito concentrada em aproveitar as oportunidades e viver as experiências. E, como resultado, trabalhei em um grande monumento histórico que marcou a minha vida. O que acho mais interessante, por exemplo, é que a Capela Porte-Rouge não havia sido restaurada, não tinha marcas de antigas restaurações. Nós fomos as primeiras pessoas a restaurá-la após o Viollet-le-Duc (1814–1879). Deixar essa marca na passagem do tempo é muito importante para nós, conservadores e restauradores.
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Jornalista.
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