Ignorando a ressaca da festa que durou 20 anos, a Cachorro idealizou uma turnê de despedida em janeiro. Deram tchau em 20 cidades.
Essa semana, o mundo celebrou os 50 anos da missão Apollo 11. À exceção dos céticos e conspiracionistas, tanto nas reportagens quanto
nas postagens de redes sociais, a tônica foi de orgulho e saudosismo pela primeira vez em que o ser humano pisou na lua. Foi em 1969, último ano dos icônicos 60, espaço temporal de divisão ideológica do mundo e, sobretudo, da inédita ocupação dos espaços sociais pela juventude, uma personagem até então disforme e invisível.
Revolução da cultura, da música, da moda, dos costumes. O jovem, outrora aprendiz engravatado e obsoleto imitando gestos e gírias dos pais, sentiu a liberdade de Kerouac, descobriu o megafone, o palanque, o dedo em riste, a justiça de gênero de Beauvoir, a marcha em 68. Viajou com Janis Joplin, flutuou em Woodstock e, nisso, a música aprendeu a ser plugada na tomada e se agarrou às guitarras para berrar mais alto que o sistema. O rock era uma realidade.
No fim de tudo isso, enquanto Neil Armstrong e Buzz Aldrin cravavam a hegemonia estadunidense na Lua, a realidade rockeira perdeu uma liderança: The Beatles chegava ao fim. E na década seguinte, a força da gravidade parecia puxar para o fundo do poço a cabeça doida de ressaca de Paul, o baixista canhota mais gênio da galáxia.
Na lama de um sítio simples na Escócia, os dias em 70 foram de agonia para os McCartney. A matriarca, Linda, já não tinha mais artifícios para negociar com o marido que levantasse da cama, saísse do quarto escuro, ou, pelo menos, tomasse um banho. Quem escuta o icônico RAM não imagina, mas ali, no fim dos Beatles, Paul também se terminava.
Eu não estava lá, eu sequer pisei no Reino Unido. Eu não sou loira legítima como Linda e, infelizmente, nasci anos depois da década de 1970. Mas no camarim do João Gilberto Bar, eu enxerguei nos olhos do Beto Bruno o ex-beatle desolado.
Se é fato que um poeta finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente, como disse Pessoa, então a prova empírica estava ali na minha frente, naqueles olhos tristes. Naquele penteado de rockeiro que aprendeu a música com os Beatles e fissurou-se nela com os Stones. De quem boicotou o sistema e realizou jovem o sonho do rockstar que mete o louco com amigos numa banda, e no fim da idade adulta precisa aprender a ser outra coisa.
Eu não estava naquela fazenda escocesa em 70, mas foi naquele camarim que entendi a força gravitacional que empurra a face de um músico pro chão depois do fim.
Seguido do cumprimento com a expressão cabisbaixa, o vocalista e líder da Cachorro Grande, que terminou sua última turnê no sábado passado, verbalizou: “Tá sendo uma mistura de nostalgia e também de liberdade, um pouco dos dois. O que tá rolando, na verdade, o que eu não imaginei, é que com essa última turnê de despedida, a gente dá a chance de terminar uma história bonita de uma forma bonita”.
Apesar da fala de esperança, os olhos- e esses não mentem- estavam indubitavelmente tristes. A fala devagar e embargada confirmava isso. Entretanto, diferente do McCartney moribundo que se lamentava no escuro, Beto lutava contra o pessimismo da tristeza e tomava um vinho para subir tinindo pela última vez com a banda no palco de Pelotas, cidade em que passaram com suas 10 turnês.
Não seria um show, mas um rito.
A despedida
Ignorando a ressaca da festa que durou 20 anos, a Cachorro idealizou uma turnê de despedida em janeiro. O consenso entre parceiros, que já não aguentavam mais discordar e suportar a cara do outro dentro de estúdio, foi de que o fim desse concerto intenso e bonito de luta, música, capa de revistas e respeito na cena merecia uma cerimônia decente. Deram tchau em 20 cidades.
E para que o adeus fosse de respeito, fizeram questão de incluir o guitarrista Marcelo Gross, demitido no ano passado, na turnê.
Tragédia anunciada
O fim do grupo foi anunciado em novembro do ano passado. Para quem tava de fora da matilha, o anúncio foi uma surpresa. Porém, para eles já faziam 2 anos que a banda se tornara uma bomba-relógio, desde as gravações do Electromod, lançado em 2016.
“Na gravação do Electromod a música foi embora, ficou em segundo lugar, foi aí que eu decidi que não queria mais gravar com a banda. Já tinha quebrado a magiquinha e o tesão de estar tocando junto. Eu fiquei tão insatisfeito que me deu vontade de fazer eu o meu disco. Deu no que deu”, confessa Beto com o mesmo ritmo triste.
Era questão de tempo. O Electromod, esquisito e deslocado na linha temporal da música dos caras, foi o Album Branco. O estopim. O “chega”. O “se ele estiver no estúdio, eu não piso”. O Ringo ignorado, o John sem tempo, o George ácido e o Paul desesperado.
“O Fim foi um consenso. Primeiro, a saída do Gross foi o ponto alto. Não consegui me recuperar nunca. Era preciso, estava insuportável a relação, mas a saída dele foi devastadora para todos. A coisa mais legal foi trazer ele de voltar para fazer essa turnê de despedida”, pontuou o cantor.
Depois do fim
Mesmo com a nostalgia deprimida de McCartney, Beto não pareceu se afundar e nem se termina. Pelo contrário, contou-me sobre os 3 singles já lançados- Depois do fim, Porque eu te amo muito e há muito tempo e Por isso o meu samba é diferente.
Com consciência madura sobre a individualidade, disse, inclusive, que a carreira solo já era algo que deveria ter tentado antes, mas faltou coragem e, principalmente, intenso como é, energia.
“Eu depositei tudo na Cachorro. Eu ia no escritório todo dia. Eu que cuido da loja. Nunca pude fazer o que estou fazendo agora. Para mim, lançar carreira solo tem que acabar a Cachorro Grande”.
O álbum completo sai ainda esse mês, com turnê solo marcada para o início de agosto. A produção e baixos são de Rodrigo Tavares (Esteban), pianos do parceiro de Cachorro Grande, Pedro Pelotas, guitarras de Gustavo X e Henry Wood (Doris Encrenqueira), violões de Sebastião Reis (Dois Reis), bateria de Eduardo Schuler (Doris Encrenqueira), além de participações especiais de Theo reis (Dois Reis), Martin Mendonça e Duda Machado (ambos da banda Pitty).
“Tu pode esperar a coisa mais sincera da minha vida. Eu tô escrevendo e cantando em primeira pessoa. Então, é mais do que verdadeiro”. O persona sola já existe no meio digital e pode ser acessado nos serviços de steaming, como Spotify.
Confira a entrevista na íntegra, no https://soundcloud.com/vict-ria-ant-nia-salom-o/entrevista-com-beto-bruno.
Internacionalista, estudante de jornalismo, sentimental e especialista em Beatles. Não para quieta, caminha correndo e um dia vai fugir para o Uruguai.
Meus cumprimentos pelo texto, Victória.
Notoriamente escrito por alguém tocada e envolvida pela situação. Nada como ler e interagir com uma matéria cheia de sentimento.
Abraço ressonante de um fã de classic rock.