“Eu lembro de pedaços de cenas, na casa da minha vó, quando eu era criança. Eu tinha uma tia, e ela dizia que, quando alguma coisa ruim me acontecesse, eu ia pra um canto e começava a cantar. A música sempre me chamou a atenção, sempre esteve comigo”.
A declaração vem dela mesma, sentada na sala da própria casa, no mesmo bairro em que nasceu e que vive até hoje. A DJ de 30 anos atrás e, que segue atualmente, com as mesmas crenças na música e na cultura popular, com as mesmas paixões pela visceralidade da música, especialmente brasileira, é uma curtidora de som, um tanto polêmica, crítica e resistente, com uma história marcada por luta, reconhecimento e respeito.
Heloisa Helena Ferreira Duarte tem 54 anos de idade e 30 de carreira. E sorri quando diz que, apesar de todo o caos existente em tempos atuais, ainda faz o que acredita e que não consegue viver sem. Tocar música é um ato de libertação contínuo e diário. Libertar a si e aos outros. Libertar mestres e mestras da música que, em grande parte, não são tocados pelas rádios, não são lembrados nas festas. Tocar música popular é libertar até mesmo a própria cidade, ainda amarrada em preconceitos e estereótipos do passado. Quando a DJ Helô toca, alguma coisa acontece.
A história daria um livro. Sobre história da vida humana, sobre diversidades, sobre arte e cultura, sobre contracultura aliás. Sobre Pelotas. Adotada aos 5 anos de idade por uma família que, “de uma maneira um tanto espiritual, deu a certeza de que era a família para estar junto, de que era ali, o lugar certo para ficar”, Helô cresceu em meio a muita música, a dificuldades financeiras, a formação de identidade e a descobertas.
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A história é longa. Inicia pela paixão pela música desde muito novinha, com histórias no rádio e em discotecagens em Santa Vitória do Palmar, fissura por discos, ansiedade necessária por encontrar a batida perfeita, por devorar música e se alimentar dessa arte viciante. Helô já teve bares, já morou em outra cidade, já tocou para poucos e muitos. Já sofreu e viveu momentos inexplicáveis. Já foi e já voltou. E agora está aqui.
O cenário das festas, em meio aos discos e CD’s, com fone de ouvido e all star, em meio a uma multidão que dança, pede músicas e vai até o palco abraçá-la, é uma atmosfera visceral e quente, de leveza e pegada. “Eu não perco uma festa da Helô.
Tento ir em todas, pois é uma maneira de afogar os meus problemas e simplesmente dançar, encontrar gente massa e ainda me inspirar com a presença e com a energia dela”, disse Franciele Correa, que mora há quatro anos em Pelotas e que lembra da primeira festa que foi. “Foi num reveillon. Todo mundo me dizia que eu tinha que ir. Naquele ano estava sozinha em Pelotas e fui. Foi a melhor escolha. Não me senti só em nenhum momento e foi um ambiente, além de divertido, acolhedor”.
Mulher, negra, homossexual e DJ
Há quem ainda ouse dizer que o preconceito não existe. Mas só quem passa na pele sabe que as diferenças, infelizmente, ainda são reais, e quando praticadas com racismo e homofobia, dóem. Pelotas, berço de uma história marcada por sangue e separatismo, ainda deixa seus resquícios de absurdos em tempos atuais. Ser mulher, negra, homossexual e DJ na Princesa do Sul não é fácil e nunca foi. “Já passei por poucas e boas aqui. Mas isso me deixou ainda mais forte. Nunca baixei minha cabeça e sigo tocando minha música, em qualquer lugar.” Helô ocupa todo e qualquer espaço. Dos subúrbios às charqueadas. Das ruas às mansões. Dos bares aos castelos mais luxuosos. Todos os lugares, sem perder e esquecer as raízes de onde veio. E para onde quer ir e estar. “Alguns se chamam pelo nome e sobrenome. Eu, ao contrário. Tenho o meu primeiro nome (Heloísa) diminuído, pela metade. Sou ao contrário disso tudo mesmo”.
A verdade é que você (todo brasileiro) tem sangue crioulo
A música popular brasileira não apenas foi o início de tudo, desde as primeiras músicas que ouvia no toca-discos ganhado pela mãe, aos 18 anos de idade, como ainda é a força da festa da Helô. Brazuca, declarada e apaixonada pelos movimentos da música nos diversos lugares do país, Helô toca manguebeat, maracatu, côco e uma infinidade de pedaços de brasis dentro de um Brasil gigante. O movimento black norte-americano também é uma forte referência. O hip-hop e “tudo o que os negros fizeram”.
A resistência em tempos estranhos
“Tá tudo bem, mas tá esquisito.” A frase escrita num muro de uma casa do bairro porto, em Pelotas, faz muito sentido. Ainda mais, se tratando da música. O que é tocado, o que é vendido massivamente, o que tá posto pelo sistema. Helô destoa disso tudo. “Nunca me rendi ao que ‘todo mundo toca’. Eu sou fiel ao que eu acredito.” Não foram apenas os “marginais” e “malditos” da música que foram heróis da contracultura. DJ’s que ainda tocam os artistas que botavam ‘a boca no trombone’, são uma espécie de heróis em tempos esquisitos. Viver tocando música popular brasileira é para poucos. Ter um público enorme, fiel e que espalha essa diversidade, é precioso. Estar em pé, em pleno 2015, com o sistema querendo engolir o pouco que temos, é heroísmo.
Recentemente, Helô tocou no palco da Virada Cultural. O cenário era ela, com seu cabeço black power, seus fones de ouvido, no centro do palco em meio aos discos. E uma multidão espalhada pelo Mercado Central, dançando. A música, que permeava a região conhecida como “o coração da cidade” e os arredores da praça e proximidades, foi, como sempre, fiel àquela libertação descrita lá no inicio do texto. O ato de libertar a si é uma forma de libertar os outros. E a música tem essa capacidade.
Representações e simbolismos à parte, é uma mulher, que aos 50 e poucos anos, vive do que ama, que dá voz aos que foram calados no passado. Que representa uma força imensa de imposição ao que acredita. Que toca por uma geração anterior e por uma geração que tá aqui e agora. Helô é, sem dúvida, uma das resistências vivas de Pelotas. E pratica a liberdade quando toca.