Editor, gestor de conteúdo, fundador do ecult. Redator e pretenso escritor, autor do romance Três contra Todos. Produtor Cultural sempre que possível.
Adorei Dois textos marginais. Na Apresentação do livro, de Manoel Soares Magalhães, consta que a obra é “um divisor de águas na literatura de Pelotas”. Não cabe discutir aqui se podemos falar em “literatura de Pelotas” ou “literatura pelotense”… Ora bem, o que faz uma literatura “ser de”? Com efeito, no livro encontramos referenciais _ Catedral São Francisco de Paula, Praça Cel. Pedro Osório, Teatro Sete de Abril, Cruz de Malta, Diário Popular, zona portuária (o “Porto”), entre outros _ que nos remetem a um ambiente “pelotense”. Mas esses referenciais são quase nada − ou nada − para qualificar a obra. Manoel vai além de referências geográficas, cujas margens não podem ser tão nitidamente delimitadas, afinal, qual cidade não tem seus “Mayflower”(s), night club underground onde se passa grande parte do primeiro texto? Qual, afinal, não tem seus “fantasmas”, seu “lixo humano” _ corruptos, corruptores, bichas, putas, bêbados, frustrados, “perdedores” da vida…? Pelotas é tão-só um referencial no livro, mas não na literatura.
Por que na literatura…? Ítalo Calvino, em observação feita à geração Anos 70: violência e paixão*, explica que os anos 70 marcaram um momento de apogeu do conto no Brasil, depois da excelente produção desse gênero na década anterior. E acrescenta: “Intensificam-se ímpetos revolucionários e dilaceramentos pessoais, agora num contexto de violência política e social até então inédito no país. O conto afirma-se como instrumento adequado para expressar artisticamente o ritmo nervoso e convulsivo desta década passional. […] Diante do consumismo e da internacionalização em que mergulha a classe média, a arte do conto busca trazer à tona o outro lado _ o lado violento e obscuro da realidade. O contista brasileiro quer desafinar o coro dos descontentes.” (Grifo meu).
Mesmo com alguns anos de atraso − a primeira edição de Dois textos marginais é de 1995 −, Soares Magalhães parece ter incorporado esse estilo de fazer literatura. Um rompimento com a concepção de criação literária se fazia necessário em Pelotas, sobretudo numa cidade denominada de “princesa” (“Princesa do Sul”), cujos habitantes da classe média vivem mais da aparência de “bom burgueses” do que na realidade o são… Talvez mesmo por essa ruptura o autor possa ser associado, ao menos nessa obra, a escritores aos quais Ítalo Calvino se reporta: escritores que produzem “à margem de”, criando uma literatura “marginal”. Esses termos devem ser entendidos não como literatura “menor”, tampouco “desprezada”, mas como um estilo de se escrever que lembra em muito a arte da contracultura, de uma estética voltada a retratar o “lixo humano” e o clima “decadente” da nossa sociedade. É nesse aspecto que entendo Dois textos marginais como uma obra “revolucionária” em Pelotas.
Além da passagem de Calvino, cito um trecho de um poema escrito por RobertoSchwarz, que bem poderia ser iniciado com “Pelotas mudou…”.
“O Brasil mudou
não é mais como antes
quando tudo terminava em abraço.
Agora tem uma cicatriz.(…)
(Schwarz, R. In: Almoço no estrangeiro)
Em post anterior (aqui), afirmei que Dois Contos marginais me lembra Bukowski. Creio essa afirmação se dever ao fato de Magalhães retratar a vida marginalizada e conflitante _ existencial, econômica, social e culturalmente _ de grande parcela dos esquecidos (excluídos?, para usar um termo muito em voga) da nossa “princesinha”. Suas personagens, assim como as de Bukowski − o de Crônicas de um amor louco −, não são “boas ou ruins”… Não há uma preocupação maquineísta para classificá-las nem parece ser preocupação de Manoel Magalhães: “apenas” são figuras que “estão no mundo”… Num mundo tão real quanto o é Pelotas.
*In: Os cem melhores contos brasileiros do século, Editora Objetiva, 2001, p: 280.