O Festival Internacional SESC de Música é uma oportunidade única de intercâmbio. Durante o evento, Pelotas recebe músicos de diferentes partes do mundo, transformando a cidade em um ponto de encontro para instrumentistas e amantes de música clássica. É comum caminhar pelo Centro Histórico e ouvir conversas em inglês ou espanhol. Em sua décima terceira edição, o festival continua surpreendendo muitos pelotenses, especialmente ao verem alunos carregando instrumentos como violoncelos ou contrabaixos em cases com alças para os ombros, parecendo mochilas gigantes.
Carregar seus instrumentos não é um esforço para os alunos, pois a música é, acima de tudo, uma paixão. E onde há atividades movidas por paixão, sempre surgem grandes histórias. Durante o Cortejo de Abertura do festival, momento em que os alunos tocam juntos enquanto caminham pelas ruas da cidade, uma pergunta me veio à mente: como é a experiência de um aluno que já esteve em várias edições do festival em comparação com a de um aluno que está participando pela primeira vez?
Para responder a essa pergunta, o Ecult conversou com a violinista venezuelana Yndira Villarroel, que participa do Festival Internacional SESC de Música desde 2015, e com o trompetista chileno Andrés Robles, que está pela primeira vez em Pelotas. Essas perspectivas complementares revelam a essência do festival como um espaço não apenas de aprendizado técnico, mas também de trocas culturais e de momentos pessoais marcantes.
Entrevista com a música Yndira Villarroel
Lucian Brum: Poderia se apresentar, contando seu nome, de onde você é e qual instrumento você toca?
Yndira Villarroel: Meu nome é Yndira Gabriela Fleitas Villarroel e sou violinista. Tenho 38 anos e sou natural da Venezuela. Comecei a vir ao festival em 2015. Naquela época, já morava em São Paulo, em São Caetano do Sul. Inclusive, foi depois do Festival de Pelotas de 2017 que fui convidada para trabalhar em Cuiabá. Desde 2017, moro em Cuiabá, no estado do Mato Grosso.
Lucian Brum: Quando e como você iniciou sua trajetória na música?
Yndira Villarroel: Bom, comecei na Venezuela, na cidade de El Tigre, quando tinha 7 anos de idade, inicialmente no canto coral. Sempre tive contato com a música e já tocava piano, mas era mais algo de acompanhamento, uma coisa mais lúdica. O violino sempre me chamou a atenção. O piano pratiquei por uns dois anos e, logo, decidi ficar com o violino. Naquela época, você dizer para os seus pais que queria fazer carreira profissional como música não era tão bem visto. Então, tive que fazer um combinado com a minha família e estudar também uma graduação no curso de Administração. Com essa troca, com essa conversa com os meus pais, pude ir para a capital e continuar no conservatório estudando violino. Foi um processo difícil estudar algo que você não quer. Tive que aprender a me dividir entre as aulas de Administração na Universidade Católica pela manhã e, à tarde e à noite, os estudos de violino no conservatório e os ensaios de orquestra. Então, a música sempre esteve na minha vida e, com disciplina, organização e responsabilidade, formou o pilar fundamental do que sou hoje.
Lucian Brum: Como foi a sua primeira experiência participando do Festival de Música de Pelotas?
Yndira Villarroel: Quando ganhei a bolsa, em 2015, e vim pela primeira vez, foi um choque para mim. Esse festival é bem longo, são duas semanas, o que acho maravilhoso, porque você tem um tempo fundamental para se adaptar ao clima, caminhar pela cidade, conhecer os professores, as aulas, os colegas… E o que mais gostei foi a receptividade; os pelotenses são muito abertos. Inclusive, ontem, eu estava perdida para ir a um lugar, e uma pessoa na rua me falou assim: “Você quer ajuda?” Isso não acontece muito em grandes cidades. Outra coisa que me chamou a atenção foram as pessoas do festival, a organização como um todo, desde a pessoa que coloca a máquina de café até a pessoa que ajeita as coisas na orquestra. Os professores também têm uma qualidade humana, não somente técnica. É bonito quando a pessoa, além de ser um profissional exímio, com uma técnica impecável e conhecimento, também tem esse lado humano que é incrível e que te ajuda na evolução.
“Saber que alguns professores te enxergam não apenas como aluna, mas como ser humano, é um ensinamento que guardo até hoje e tento me colocar dessa forma para os meus alunos’’
Lucian Brum: Qual foi o impacto do festival no seu desenvolvimento como música?
Yndira Villarroel: Vivenciei três momentos marcantes para minha vida em Pelotas. No primeiro festival que vim, em 2015, conheci o professor Emmanuele Baldini. Já o conhecia do meio musical de São Paulo, mas, propriamente, o conheci aqui. Meses depois, ganhei uma vaga para ter aula com ele em São Paulo. Isso mudou a minha vida em vários sentidos, ele é o Spalla da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), uma das principais orquestras aqui do Brasil. Quando comecei a ter aula com ele, tive a oportunidade de praticar toda semana na Sala São Paulo, junto com o spalla da OSESP.
- O segundo foi em 2017. Sou oriunda de um modelo didático musical criado na Venezuela chamado El Sistema. Nesse ano, conheci a coordenadora pedagógica, na época, de um projeto social inspirado no El Sistema, chamado Instituto Ciranda. Lembro que a gente foi tomar um sorvete perto do Hotel Curi — olha o meu braço, fiquei toda arrepiada —, e a pessoa olhou para mim e falou assim: “Estou te oferecendo um trabalho.” Uma semana depois do festival, viajei para Cuiabá, no Mato Grosso, para conhecer o projeto e ministrar algumas masterclasses, e é onde moro até hoje.
- O terceiro também foi em 2017, quando conheci o professor Roman Spitzer. Ele foi, por muitos anos, o principal músico de viola clássica da Orquestra Filarmônica de Israel, e quando o conheci acabava de ganhar a vaga como primeira viola da Filarmônica de Rotterdã. Uma amiga me convidou para tocar um duo de violino e viola, e falou assim: “Vamos fazer aula com o professor de viola que veio de fora” Respondi: “Bom, tudo bem, gosto de tocar para os professores de viola, então bora, vamos lá.” Nas aulas com esse professor, minha amiga e eu tocamos o duo de violino e viola de Mozart, e foi incrível. O professor teve uma forma única de conduzir as orientações. Ele falou numa das aulas: “Yndira, você é boa, e você faz as mudanças sugeridas muito rápido.” Ele seguia com as orientações, e eu acertava. Esse entendimento entre aluno e professor, quando encaixa, encaixa. Contei para o professor que normalmente fico muito nervosa antes de tocar. No primeiro recital, ele falou: “Yndira, eu faço tais coisas antes de tocar, é o meu ritual.” Eu “fiz’’ esse ritual, e funcionou perfeitamente bem no primeiro recital com o duo. Mas também acredito que isso aconteceu pela confiança que ele me transmitiu, essa força que ele me deu. Saber que alguns professores te enxergam não apenas como aluna, mas como ser humano, é um ensinamento que guardo até hoje e tento me colocar dessa forma para os meus alunos. Ele me ajudou não somente como professor de técnica e musicalidade, mas também como pessoa e mulher imigrante. Aprendi a ter mais confiança em mim mesma e a perceber que tenho condições de fazer o que eu quiser com o meu violino.
Lucian Brum: Você já participou de outros festivais fora do Brasil? Quais diferenças percebe entre esses eventos e o Festival Internacional SESC de Música em Pelotas?
Yndira Villarroel: Quando fui morar nos Estados Unidos, participei do Summer Camp no Festival de Verão em West Palm Beach, na Flórida. Foi muito bom porque você tem aulas durante um mês no Summer Camp, e pude tocar com pessoas da Juilliard School, que é uma das melhores universidades de música do mundo. Mas você chegava no festival e já estava o grupo de câmara formado, já vinham definidas as aulas para você, era tudo muito armadinho, sabe? Para mim, talvez naquele momento, quando tinha 25 anos, era esse o sentimento. Desde que comecei a participar do Festival de Pelotas, não tenho ido para outros festivais. Lembro que uma amiga me disse assim: “Yndira, você não vai querer ir para outro festival depois”. De fato, vim em 2015 e só parei em 2021 porque havia limite de idade. Quando flexibilizaram essa parte do limite de idade, retornei. É um festival que acontece, como te falei, com atenção e abertura para as pessoas. Você conhece as pessoas no primeiro dia e vai organizando o grupo com que quer tocar um duo, que quer tocar um trio, que quer tocar um quarteto. O bonito de formar esses grupos é que você consegue tocar com as pessoas com as quais sente mais empatia. E, às vezes, no mesmo grupo, não há pessoas do mesmo nível técnico e musical, e você vai ajudando e aprendendo com seus colegas. Tem um menino aqui que conheci no meu primeiro ano no festival. Vejo como ele tem crescido musicalmente e tecnicamente, e estou super orgulhosa. Assim como de outros colegas que vi iniciando no violino, iniciando na viola, em outros instrumentos, e hoje estamos todos tocando juntos. Então, quando as coisas funcionam, quando as coisas são feitas de boa maneira, acho que tem esse resultado maravilhoso.
Lucian Brum: Você pretende continuar participando do Festival de Pelotas nos próximos anos?
Yndira Villarroel: Bom, hoje eu estava no almoço com meus colegas e falei assim: “Acho que este é o meu último ano aqui no festival.” Mas por que eu falei isso? Porque estou em outro momento, já tenho 38 anos, e estou encontrando aqui pessoas de 15, 16 anos já tocando maravilhosamente bem. Não estou me comparando, mas acho que o meu momento de vir ao festival como aluna talvez deva ser encerrado. Penso que outras pessoas poderiam usufruir dessa vaga e aproveitar também todos esses ensinamentos. Estou agora iniciando o doutorado acadêmico, mas minha trajetória iniciou em um projeto social na Venezuela. E graças a isso trabalhei em Mato Grosso em um projeto social como professora de violino e de viola, como coordenadora de cordas e coordenadora pedagógica, além de ser a Spalla da orquestra. Todavia, não descarto a possibilidade de continuar vindo e gostaria de vir. Quem sabe, em algum momento, ser convidada para, sei lá, fazer monitoria dos alunos da Orquestra do Projeto Social.
Entrevista com o músico Andrés Robles
Lucian Brum: Você poderia se apresentar, dizendo seu nome e a cidade onde mora no Chile?
Andrés Robles: Meu nome é Andrés Yiro Robles Pereira. Sou de Coquimbo, no Chile, uma cidade que fica a 6 horas da capital. Tenho 20 anos.
Lucian Brum: Qual instrumento você toca e desde quando o pratica?
Andrés Robles: Sou trompetista e toco o meu instrumento há 16 anos. Comecei a tocar trompete aos 4 anos. Meu pai também é músico, assim como eu, e ele é trompetista. Ele toca música popular, como cumbia, boleros e esse tipo de música que se ouve muito no Chile.
Lucian Brum: Como você se interessou pelo Festival Internacional SESC de Música? O que te motivou a participar?
Andrés Robles: Eu tinha um professor, na verdade, que era Cristóbal Rojas. Ele havia estudado no Brasil. Era o trompete principal da Filarmônica do Chile. E ele me disse que eu deveria me inscrever aqui, pois era uma oportunidade única. Porque existem trompetistas muito bons, lendas entre os professores, que realmente iriam me fazer muito bem. Ele disse: “Você precisa ir lá.” Ele me preparou e, claro, eu me inscrevi e fui selecionado. Hoje em dia, Cristóbal faleceu. Ele faleceu, mas o bom é que seu legado ficou. E graças a Deus, estou aqui por causa dele.
Lucian Brum: E o que você está achando da experiência até agora?
Andrés Robles: Está sendo incrível. Os professores são de altíssimo nível. Eles realmente fazem você tocar com alto desempenho. Além disso, meus colegas. A gente aprende muito com os colegas de trompete, que tocam muito bem, com um nível muito alto. Além dos grupos que formamos. Fora de tocar no festival, formamos grupos para tocar música de câmara, como um quinteto de metais, duos, trios ou quartetos. E isso enriquece o músico. Enriquecem o músico e me enriqueceram. A experiência que tive com todos os colegas, amigos, foi espetacular. Todos são muito simpáticos e sempre querem ajudar. Então, é muito bonito, sendo estrangeiro, chegar a um país tão rico em cultura como o Brasil. Se sente algo diferente, novos ares… E eu gosto muito disso.
“O mais importante da cultura neste país é que as pessoas se unem, se juntam, ouvem música, veem arte e se enchem de vida’’
Lucian Brum: Você teve a oportunidade de caminhar pela cidade? O que achou de Pelotas até agora?
Andrés Robles: Parece uma cidade muito tranquila, muito bonita para viver. Sinto que esse festival dá vida a esta cidade. Claro, toquei no carnaval. Não sei se pode chamar de carnaval, mas estávamos tocando na rua. Eu estava tocando lá e adorei. Foi incrível, a galera dançava muito, curtia muito a música, pediam fotos, e isso é algo incomparável. Não se vê em qualquer lugar, não se vê em qualquer parte do mundo. E ver isso aqui, além da união, eu acho que a união é o mais importante. O mais importante da cultura neste país é que as pessoas se unem, se juntam, ouvem música, veem arte e se enchem de vida.
Lucian Brum: Quais são as principais técnicas ou aprendizados que você está adquirindo durante o festival?
Andrés Robles: Bom, disciplina. Em primeiro lugar, muita disciplina, pois temos aulas desde as 9 da manhã e precisamos acordar cedo todos os dias. Estar aqui pelo menos 30 minutos antes, aquecendo, nos preparando para as grandes aulas. São aulas de três horas. E depois temos ensaio na orquestra. Então, simula um pouco o que é ser um músico profissional, pois muitos são profissionais. Mas, claro, simula um trabalho estável. E isso acho muito bom, porque você vive de orquestras e, às vezes, precisa dessa experiência de tocar em um lugar com alto nível de exigência. E, claro, tecnicamente, é uma evolução muito grande, pois os professores nos orientam o tempo todo e nos ajudam com qualquer dúvida. Então, é um grande salto para mim. E eu gosto muito de estar em um bom nível aqui, sempre me desafiando para continuar crescendo e avançando na música.
Lucian Brum: Se você pudesse convidar outros estudantes a participar do festival, o que diria para convencê-los?
Andrés Robles: Se quiserem ter uma boa experiência, se quiserem se tornar grandes músicos, se quiserem se encher de vida, de energia positiva, para continuar avançando nesse caminho tão difícil, venham ao festival. Pois aqui há professores de altíssima qualidade, pessoas muito boas, e colegas que se tornarão amigos. No final, sinto que somos como uma família, e isso é o mais lindo. Tocar na orquestra é como uma família, uma equipe. Então, isso é muito bonito para todos, e é uma experiência inigualável.
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Jornalista.
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