Não é exagero nenhum afirmar que o novo disco da Elza Soares está entre os discos mais aguardados de 2018. O sucessor do premiado A Mulher do Fim do Mundo tem lançamento previsto para maio, pela gravadora Deckdisc, e foi batizado de Deus é Mulher.
O compositor e músico pelotense Luciano Mello está entre os colaboradores deste novo trabalho e contou ao e-Cult um pouco dessa experiência.
Embora já tivesse uma carreira consolidada, com dezenas de discos lançados, o álbum de 2015 representou um grande marco na carreira de Elza. A Mulher do Fim do Mundo foi o primeiro álbum de músicas inéditas da carreira da cantora. Ela fez questão de escolher músicas que enfatizam temas muito presentes na sua vida, como violência doméstica, negritude, vida urbana, entre outros.
Unanimidade entre os críticos, o disco de Elza foi eleito o melhor álbum de 2015 em diversas listas como da revista Rolling Stone e dos sites TMDQA e Na Mira do Groove. Em 2016 foi coroado com o Grammy Latino na categoria de melhor álbum de MPB.
O aguardado novo disco contará com as principais peças do time que trabalhou no anterior, incluindo a produção musical de Guilherme Kastrup e a direção artística de Romulo Fróes. No último dia 24, o jornal O Globo apresentou a letra de uma das músicas que estará presente no novo disco (veja aqui). E eis aí uma surpresa para nós pelotenses e quem acompanha o trabalho do Luciano Mello. A faixa Dentro de Cada Um, parceria dele com Pedro Loureiro, está entre as 11 escolhidas para o disco. A seguir, Luciano detalha o processo de sua participação neste trabalho.
– Desde quando tu conheces o Pedro Loureiro e como que é o processo de criação de vocês?
Eu e o Pedro nos conhecemos desde 2016. O Pedro teve uma carreira artística como cantor e, além de ser um talentosíssimo produtor executivo, é um excelente compositor, ainda que, muito tímido pro meu gosto, pois é difícil fazer com que ele mostre algo.
Dentro de Cada Um foi encomendada pela Elza. Ela pediu ao Pedro uma música com um tema muito específico, ela queria falar do empoderamento feminino, mas ela queria mais: ela entende o empoderamento feminino como uma revolução pessoal. Ela entende que cada um tem necessariamente uma mulher dentro de si e que qualquer repressão contra mulheres, gays, trans e oprimidos em geral só se extinguirá quando cada um deixar fluir a mulher que tem dentro de si. Falando assim, certamente uma grande cota de machistas imbecis (vale para homens e mulheres, sem distinção, machista tem em todo o canto) vão imaginar que estou falando que eles devem se tornar gays ou colocarem alguns desejos secretos em prática, mas a questão é mais profunda. Deixar a mulher que existe dentro de cada um fluir é, pra Elza, pra mim e pro Pedro também, uma forma absolutamente revolucionária de mudar as coisas que estão à volta. A maioria esmagadora da população mundial teve uma mãe ou uma presença feminina forte na sua criação e, a bem da verdade, há muito pouca diferença entre os sexos. Ao contrário do que se prega por aí, o que não é natural é ser tão macho ou tão fêmea. Isso vale pra os que gostam do papo do que é da natureza ou não.
Compor é uma tarefa íntima, não há exatidão no processo, o rigor e a exatidão estão no resultado. Mas o fato é que eu e o Pedro fizemos a letra por telefone. Conversávamos e eu anotava. Muitas coisas que ele dizia já saiam com métrica e, sem que ele percebesse, eu já estava anotando. Depois de uma hora de conversa eu disse para ele que a letra estava pronta e li, daí eu e ele fomos trocando palavras, adequando à uma métrica geral, procurando, por vezes, algumas rimas. Depois fui pro piano e na mesma madrugada eu tinha uma demo pronta e mandei pro Pedro.
– Como foi o processo de escolha da Elza?
Aí entra a parte difícil. O Pedro é estrategista de carreira da Elza Soares, por uma questão ética ele não poderia colocar uma composição própria na seleção. Eu entrava de carona nessa questão de não poder participar como compositor, por ser muito amigo dele. Mas a gente imaginava que havia uma probabilidade muito grande da Elza querer a canção. Ela ainda não tinha ouvido, mas tínhamos escrito o que ela havia pedido. O jeito foi participar da triagem, como todos os demais participaram. Pelo que sei, mais de 3.000 músicas, foi mais ou menos como quando ganhei o Itaú Cultural em 2001. O Pedro, como bom estrategista que é, teve uma ideia duchampiana: inscreveu a música como se fosse de um compositor chamado Lírio Rosa e torceu pra que ninguém conhecesse a minha voz. O Guilherme Kastrup, produtor musical da Elza, fez a triagem inicial, reduzindo as mais de 3.000 canções iniciais para 30. A partir de então, o Kastrup constituiu um núcleo de cinco jurados: Ele (Guikherme Kastrup), a Elza Soares, o Rômulo Fróes, o Juliano Almeida e, pra piorar de vez nossa situação, o próprio Pedro Loureiro. Havia chegado o grande dia, porém, nossa música não estava entre as 30 finalistas. Mas, o milagre aconteceu: a Elza após ouvir as 30 disse que ficaria apenas com 9 e que faltavam pelo menos duas. Partiram então para mais uma rodada de 30 músicas. Pelo que sei, Dentro de Cada Um, que até então se chamava “A mulher de dentro de cada um”, foi a terceira a ser reproduzida nessa segunda rodada. No meio da música a Elza decretou: “Eu quero essa música!” O Pedro se retirou discretamente, pediu que votassem sem ele, me ligou e contou o que tava acontecendo. Tremi na base! Era a Elza, intérprete absolutamente formativa na minha cultura musical, uma das minhas cantoras prediletas desde que eu me entendo por gente. Quando o Pedro voltou à sala a confusão tava armada, a Elza queria a música a todo custo, porém, ninguém sabia quem era Lírio Rosa, não havia endereço, não havia nada, alguns telefonemas já haviam sido dados e nada. Então o Pedro anuncia: Gente, eu conheço o Lírio Rosa, sou eu! Eu e o Luciano Mello. Explicações dadas, logo em seguida o Pedro me ligou perguntando se eu me incomodava de trocarmos o nome para “Dentro de cada um”, era um pedido da Elza. Só então, o Pedro contou pra ela que era a canção que ela tinha encomendado, porém, que tínhamos optado pela seleção. Pouco tempo depois, dois meses ou menos, eu recebi a foto da Elza gravando com a letra na estante de partituras.
Nota: o álbum incluirá ainda músicas de Tulipa Ruiz, Romulo Fróes e Alice Coutinho, Douglas Germano, Pedro Luís, Mariá Portugal, Caio Pedro.
– Tu costumas trabalhar com parcerias em tuas composições?
Meu processo de composição é, na maioria das vezes, solitário. Tenho, inclusive dificuldades de compor em parceria. Até mesmo minhas parcerias anteriores foram feitas de forma solitária, não existe pra mim essa coisa de “Vamos fazer uma música!” e a música acontecer. Com o Pedro, no entanto, é diferente, existe uma fluência muito intensa. Já compusemos mais outras duas músicas, também a pedidos. Encontramos uma maneira de compor por encomenda e isso é ótimo, é uma parceria que, como disse, flui. Essa fluência vem desde a vez em que trabalhamos juntos na estratégia da carreira de um artista que produzi e que iríamos lançar juntos. Também montamos uma equipe coordenada por mim, pelo Pedro, pelo Patrick Tedesco e pelo Bira Massaut com a Projetar do Rio de Janeiro e a CKCO de Pelotas para trabalhamos na pesquisa das gravações da Elza Soares, fizemos o levantamento desde sua primeira gravação e isso sempre gerava muitas e longas conversas com o Pedro.
E criações entre amigos que são compositores acontecem, na maioria das vezes, naturalmente. Já houve caso em que o Vitor Ramil encontrou uma letra que eu tinha acabado de fazer em cima do meu piano e começou a musicar imediatamente. A música No Floor foi pro meu CD Universo Barato, com eu cantando e o Vitor tocando piano e percussão no piano. Teve um outro caso em que o Vitor botou letra numa música instrumental minha, Fórmica Blue (Valsa tola), gravada pela Adriana Maciel. O Arthur de Faria já me mandou músicas pra eu colocar a letra, nunca devolvi, porém, já mandei letras pra ele musicar, em geral ele devolve, fizemos uma música chamada O Olho de Deus, que vai estar no seu novo álbum. Compus algumas músicas com o Fabio Medina, pra mim um dos melhores cantores, excelente arranjador e produtor, um dos artistas mais completos e geniais das safras mais novas no Brasil. Com ele, fiz por encomenda, Sick Of Love. Ele me entregou a letra e disse: me tira da minha zona de conforto, e eu tirei. Depois, ele pediu que eu solucionasse um refrão de uma música que ele tinha composto, reescrevi a melodia do refrão, totalmente baseado na ideia dele que, generosamente, me atribuiu a parceria em Until We Get There, do álbum Keep It Down. Não há critérios para as parcerias se estabelecerem. Essas coisas vão acontecendo, às vezes, muito naturalmente, outras, por encomenda.
– Qual tua relação com a música e obra da Elza Soares?
É uma ligação ancestral. Meu avô era fã da Elza Soares, minha mãe também. Sempre ouvia falar, mas ouvir com atenção mesmo foi quando o Caetano chamou ela pra gravar a música Língua. Eu pirei com aquela voz. Eu sabia quem ela era, adorava a figura, mas ela me destruiu no dia que eu a vi cantando, em 1986, a música Tiro de Misericórdia do João Bosco e do Aldir Blank no programa Chico & Caetano. Nunca mais parei de ouvir. Quando saiu A Mulher do Fim do Mundo, eu entendi claramente que a história estava se encarregando de colocar a Elza Soares no seu devido e justíssimo lugar. O Lugar reconhecido de uma das maiores e mais contemporâneas cantoras do Brasil. Fico imaginando como vai ser agora nesse álbum Deus é Mulher, em que ela tem por parte da mídia e do público o devido reconhecimento. A Elza não é apenas uma cantora, é uma força revolucionária.
– O Histórias em Torno da Queda foi teu último álbum, correto? Atualmente, tens trabalhando em um novo disco ou quais são os projetos para o futuro?
O Histórias em Torno da Queda é meu terceiro álbum solo. Esse negócio de último é pra artista que já morreu e todas as suas obras póstumas já foram lançadas (risos). Brincadeiras à parte, meu primeiro CD lançado foi como compositor, produtor e arranjador de um projeto chamado “ZURBe”, ao lado de Miguel Feldens, isso foi lá por 1996, saiu CD, vendeu e foi considerada por alguma revista importante do momento como o primeiro lançamento de industrial music no Brasil, na época o Miranda se interessou, mas a ZURBe não era nem o que eu queria fazer, nem o que o Miguel queria, não colocamos o álbum nem nas plataformas de streaming, mas admito que era uma produção bastante sofisticada pra época. Depois veio, ou melhor, não veio o Canções com restos de acordes que seria o meu primeiro álbum e sairia em 1997, porém se perdeu entre negociações com gravadoras e a quebradeira geral que a pirataria já estava começando a causar, mas a gente nem percebia. Só lancei outro álbum, dessa vez exatamente como eu queria, em 2007, Universo Barato, com participações do Vitor Ramil, Nelson Coelho de Castro, Nico Nicolaiewsky, Pezão (do Papas da Língua), mais uma galera alto nível, graças ao Fumproarte-Porto Alegre, que naquela época existia em Porto Alegre, essas coisas maravilhosas que tinham antes das pessoas saírem pras janelas dos seus apartamentos de luxo batendo panelas e fazerem cultos a patos amarelos em frente à FIESP. Entre o Universo Barato e o Histórias em torno da queda, fiz muitas trilhas para teatro, como o Senhor Kolpert e No que você está pensando, ambas dirigidas por Tainah Dadda, a mesma diretora cênica do meu atual show, Depois da queda, e lancei um EP chamado TrêsCaetanos com leituras minhas para três canções do Caetano Veloso. Agora, ainda no primeiro semestre, pretendo lançar o álbum Depois da Queda, que vai ser meu primeiro álbum ao vivo. O Depois da Queda é um show que eu adoro, com vídeos montados pelo artista multimídia Patrick Tedesco, que são manipulados e editados durante as canções. É uma série de aparatos eletrônicos novos e antigos, tudo no palco e eu no meio desses brinquedos. É um show político. Já que uma parcela grande da população quer andar pra trás, é nossa obrigação como artistas, voltar à canção de protesto e tentar empurrar pra frente. É por aí.
Obs: o CD Depois da Queda foi recentemente aprovado no edital do Programa Municipal de Incentivo à Cultura (Procultura).
Acompanhe Luciano Mello em: https://www.facebook.com/lucianomellomusic
Jornalista, estudante de História, obcecado por música. Conhece menos atalhos em seu computador que a sua gata.
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