Ele escuta uma música que fala de filho pródigo. O ônibus sacode, o coração treme, esperançoso por voltar àquela terra. A terra nos faz nascer, ela doa os primeiros encontros, o clima propício, as palavras comuns, a primeira bagagem. A mesma terra nos faz sofrer, posto que ela é palco das nossas tragédias mais íntimas, posto que nascemos dela e nascer é trágico.
Viagem intensa: Selva de Pedra-Interior. Sente uma dor deliciosa, dor de voltar ao obscuro ventre que o cuspiu no mundo. Não, não foi a terra tão sua que o cuspiu, foram as gentes! Mas o que são as gentes senão a terra com comunicação verbal?
O ônibus para. Nada a sua espera. Nada. Tomou o táxi sem saber para onde ir, sem nada mais saber. Sangue descontrolado na veia, frenético, sem saber para onde correr.
– O Senhor vai para onde? Senhor? Aonde Senhor?
Ele nem sabe. Parado no táxi, na cidade parada para ele. Ele não é mais dela? Pensou tanto, planejou tanto voltar que percebe que não há amigos nem sonhos de infância. Só gente duvidosa dele e ele mais duvidoso ainda de si e deles. Eles quem? Nem existiam mais ou existiam no interior do seu interior?
– O Senhor está se sentindo mal?
-Meu jovem, leve-me para aquele hospital, aquele antigo… Foi lá que eu nasci.
O taxista é jovem, não entende do que ele fala; o taxista não sabe que naquele cenário ele sorriu e chorou, às vezes, inúmeras vezes… O taxista desconhece os mortos dele, nada sabe de chão, ainda não. Ainda não é tempo.
Morrer onde nasceu. Ele tem o privilégio disto. Poucos podem planejar – a morte nem sempre avisa. Ele não, ele está ciente, ele recebeu este presente e futuro não existe mais.
Saudade e Raiva. Lembrança e vontade de esquecer.
Pára o táxi. Ele desce. O taxista cobra a corrida. Ele não quer pagar, mas paga. A cidade não o deveria indenizar os tempos injustos? O taxista é jovem, não entende de história, ainda não.
– Está vendo aquele prédio ali moço? Meu pai que fez e eu ajudei a construir.
O taxista sorri, inexpressivo. Ele fica ali, defronte do prédio e adiante não há mais. Outro carro, desgovernado desponta: apressado, engole o carro do taxista, que dança no céu e na terra pousa. Ele é velho, já viu muitas coisas, mas o jovem não verá! Aproxima-se do carro. Sangue vivo. Jovem morto? E o outro carro? Onde está?
O Hospital. Ele corre como se tivesse a energia de antes. Ele corre com a energia do rapaz que agora é velho, que agora é tarde demais. Transplante de vida?
O jovem nada mais pode fazer, mas ele pode ainda! Ele pode respirar o ar daquela noite triste e mágica. Ele pode ver aquela folha cair e levantar pela força do vento. A terra pode nos fazer nascer, morrer e nascer de novo- pensa.
Ambulância, gentes e sirenes. Ele se afasta, não quer saber de fim, mas de recomeço. A dor deliciosa do Filho Prodígio.
Filho Prodígio – Crônica por Charlie Rayné
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