Na última quinta-feira, 1º de outubro, Luciano Mello e Patrick Tedesco lançaram o projeto Vida Portátil, um novo álbum e o vídeo de uma performance gravada ao vivo, em casa.
Os dois artistas gaúchos atualmente estão se dividindo entre Portugal e Brasil e foram selecionados em um concurso da Câmara Municipal de Braga, cidade do norte de Portugal, para realizar este projeto. O vídeo está disponível em youtube.com/lucianomellomusic, e o disco nas principais plataformas de streaming de música.
Vida portátil, por Guto Leite
A primeira sensação que temos ao topar com o espetáculo Vida portátil (Luciano Mello & Patrick Tedesco) é de que se trata de gente de fora, de outro lugar, de outro tempo, de gente que não pertence ao nosso mundo. À frente, Luciano Mello entoa, no sentido de declamar melodiosamente, o poema “Antenas” ao som de uma base eletrônica sua, cheia de ruídos; ao fundo, a obra homônima, de Patrick Tedesco e Luciano Mello, apresenta imagens que se sucedem em determinado ritmo, ciclicamente; além da sombra do intérprete, depositada na tela.
A segunda sensação contradiz, em termos, a primeira: não estamos diante de forasteiros. Os versos, as imagens, parecem falar melhor sobre o nosso mundo do que as fontes costumeiras: imprensa, porta-vozes de governos, instagramers, formadores de opinião. Também fica claro, logo nos primeiros minutos, que temos uma obra conceitual, integrada (poesia, música e imagens), crítica e de vanguarda. Para quem acompanha há mais de uma década a carreira de ambos, não há surpresa.
Luciano Mello é um grande cancionista, um extraordinário conhecedor de timbres, bases, equipamentos, mixagens e tais e tem uma postura estético-crítica singular e radical, corando a tradicional vanguarda orgânica brasileira.
Patrick Tedesco, não menos excepcional, elabora sua experiência sempre de maneira minuciosa, epitelial, não raro sobre a forma como temporalidades distintas coexistem no presente e trazem implicações às pessoas e às coisas.
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“Empty”, segundo momento do espetáculo, recoloca a dúvida original e as tensões. Um Wurlitzer em loop toca
um arpejo sobre uma base sonora que continua do primeiro poema. Um sampler emula as palavras, gravadas em inglês (na voz de Fabio Medina) e em português, tocadas por Luciano.
Ao fundo, “Empty”, também de Luciano e Patrick, mas de dez anos antes: uma esfera vermelha, incompleta, em rotação, acendendo a cena. Um trabalho para recuperar as camadas do que está proposto seria verdadeiramente arqueológico, uma arqueologia daquilo que ainda vai se sedimentar, uma arqueologia do futuro – para aludir a uma canção de Universo Barato (2006), álbum de Luciano Mello.
Trata-se de uma canção, como a conhecemos? Se o intérprete não canta, mas dispara através do sampler sua entoação, é ele quem entoa ou é a máquina? As obras homônimas até aqui são indivisíveis ou posso falar de
uma ou de outra em separado? Essa estrutura de ecos e incomunicabilidade é oriunda de um único sujeito compósito, de dois sujeitos ou de vários? Essas perguntas todas, mais do que a ambição de esgotar o objeto, buscam apontar para o que está decantado ali. E não se trata de uma alta exigência vazia, de quem pratica o hermetismo pelo hermetismo, mas da suspeita de que para falar sobre algumas experiências neste mundo talvez não seja possível recorrer a algo simples.
Como minha tarefa é depôr pela importância de Vida portátil – aliás, todas as vidades humanas são portáteis? Há vida que não se possa portar? Que mecanismos tornam portáteis uma vida? E quais apetrechos impedem a vida de ser portátil? – e convidar outras pessoas pra conferir o espetáculo, que sairá em disco no dia primeiro de outubro de 2020, vou me ater ao que pode ser elaborado intelectivamente, isto é, estou deixando de lado a sensação poderosa, sensível, corporal, acústica, visual, de nos deparamos com o trabalho desses dois viajantes do aqui-agora.
Primeiro, revelar que se trata de um trabalho que tentou acontecer outras vezes, mas foi impossível porque seu projeto era inalcançável para o tempo em que foi pensado. Depois, encontrou-se uma forma de captar o dinheiro e de se obter a tecnologia, mas não recebeu o devido apoio do empresariado brasileiro. Vejam! Conto tudo isso para dar a dimensão do esforço de quem antecipou alguns lances do jogo de xadrez das forças e busca se concretizar justamente pelos jogadores adversários, não interessados em revelar este mundo em que vivemos mergulhados, tocando eventualmente os outros com nossas antenas.
Segundo, indicar a sensação forte de diálogo e parceria que a obra veicula. A relação profunda entre dois artistas,
Luciano Mello e Patrick Tedesco, ganha forma concreta no trabalho, ao colaborarem para uma visão e uma sensibilidade compartilhadas sobre como se apresenta nosso tempo. Se as grandes obras têm algumas força de autonomia, independente do quanto estejamos soterrados por cacarecos, difícil não apostar de que estamos diante de uma grande visão sobre o nosso tempo a partir de dois cosmopolitas (brasileiros, um gaúcho, pelotense e outro paranaense, patobranquense) que conseguiram, enfim, elaborar seus trabalhos vencendo um
edital fora do país.
Aos seis minutos e dezessete, ouvimos o primeiro silêncio (silêncio? Talvez uma mudança de um ruído mais presente para outro mais sutil) do show, brevíssimo, antes que comece o que, para mim, é a primeira canção stricto sensu, “Num shopping”.
A obra de Patrick projetada – “Obra em derretimento: ao vivo no museu nº01” (2012) – colore Luciano de um azul vivo e ele começa: “Estou sentado num shopping / Estou esperando um telefonema / Estou aguardando no lugar marcado”. Minha cabeça dispara: bah, parece que é o melhor trabalho do Luciano como compositor (o que, pra mim, se confirmaria ao final do espetáculo), pela fluência com que muitas camadas de sentidos são desfiadas num tempo tão curto, num grau altíssimo de concentração.
Logo em seguida penso se teria a mesma sensação sem o trabalho também sempre de altíssimo nível do Patrick. (Acho que os artistas já respondem à minha canção ao assinarem conjuntamente o álbum, não? Repito: que será lançado dia primeiro de outubro.) E, ato contínuo, se não estou considerando a força transportada ao espetáculo de estarem ambos exilados em Portugal neste momento – onde também vão sendo chocados os ovos do fascismo, já internacionalmente organizado.
Em sentido inverso, tomando por base a vida cotidiana material dos dois artistas extraordinários, penso que o projeto antigo, há tanto tempo apurado, está agora embebido da experiência atual de ambos e não chegaria a termo, inclusive, se não fossem suas condições de estrangeiros, num país que de certa forma é, ele mesmo, estrangeiro no contexto europeu.
Lamento, retrospectivamente, as milhagens necessárias para que Vida portátil venha à tona, mas com mais força saúdo esse exemplo de rigor, de talento, de excelência estética, de teimosia crítica, construído a seu modo por cada um deles de maneira tão inerente à sua contraparte, que nos confere aquela alegria triste, sabe?, do encontro da grande obra de arte que te mostra um mundo ainda mais em pedaços do que imaginávamos minutos antes.
Seria possível seguir, mas estaria tomando de vocês a possibilidade desse encontro, desse alumbramento, dessa alegria triste, dessa necessidade de ouvir e de ver dois grandes artistas do nosso tempo. De nosso tempo? Que tempo?! Vida portátil, em todos sentidos, é um acontecimento!
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Ficha Técnica
Vida Portátil – Experiência #1
Luciano Mello e Patrick Tedesco
Luciano Mello
Synths, beats, Wurlitzer, loops, samples, voz, concepção
Patrick Tedesco
Vídeos projetáveis, concepção e capa do álbum (Imagem em
Derretimento nº1: autorretrato).
Feat. Fabio Medina: Sample voice em “Empty”
Gravado ao vivo em casa durante a pandemia COVID~19 em julho de
2020 para o projeto ACTUM BRAGA – Portugal, com equipamento do
Estúdio Três, por Luciano Mello e Patrick Tedesco.
Mixado por Luciano Mello no Três, Braga , Portugal, julho 2020
Masterizado por Marcos Abreu em Porto Alegre -RS, Brasil, julho 2020
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