Há cem anos, Simões Lopes Neto lançava “Cancioneiro Guasca”, obra que não mereceu a mesma atenção de “Contos Gauchescos”, mas que marca opção pelo regionalismo
Em tempos de franca expansão da literatura de massa, parece um contra-senso festejar o centenário de nascimento de um escritor ou de publicação de uma obra. A velocidade, o volume e a superficialidade de muitos textos que circulam agora em rede mundial colocam em dúvida até mesmo a solidez da tradição.
Tempos difíceis. Abaladas as noções de cânone e de universalidade, irrompe um conjunto de obras resgatadas da obscura vala comum da literatura. Feiras de livros em todas as praças, jovens escritores nas escolas, certames literários, inúmeras editoras novas, blogs literários, livros eletrônicos. Os meios de divulgação de obras literárias assumem uma amplitude nunca experimentada e, ao mesmo tempo, expõem a qualidade duvidosa daquilo que se publica e se lê.
O casamento editora-autor-livro-escola ou feira, por exemplo, além de contabilizar grandes cifras, é responsável pelo recrudescimento da categoria dos escritores ambulantes. Ao mesmo tempo, a expansão de gráficas e editoras domésticas traz em seu bojo a possibilidade de qualquer indivíduo gozar o status de escritor e disputar a glória dos centenários. O apoio financeiro de órgãos públicos, simultaneamente aos patrocínios privados e particulares, também tem contribuído para trazer a lume obras que, do contrário, permaneceriam desconhecidas do público ou nem teriam sido escritas. Sim, porque a escritura literária não é motivada apenas pelas inquietações existenciais dos seus autores, mas também por incentivos financeiros. Quem, dono de um relativo léxico e de uma ideia dependurada no trapézio, não se imagina usando o fardão dos acadêmicos no chá das cinco e entrando para história dos centenários?
Os caracteres que marcam estes tempos difíceis produzem, também, epítetos surpreendentes: trata-se da expressão “best-seller regional”. Depois de Carlos Reverbel ter definido Simões Lopes Neto como “escritor municipal”, em razão tanto do seu percurso biográfico quanto do círculo inicial a que suas obras se restringiram, merece atenção especial o fato de um autor qualificar sua obra como – repita-se sempre entre aspas – “best-seller regional”. E Simões Lopes, como todo o mundo viu, conheceu a glória póstuma e ingressou, ainda em 1965, no seleto almanaque dos centenários.
A ninguém mais surpreende a informação de que a obra do contista pelotense, até a década de 1940, passava quase despercebida dos círculos literários e acadêmicos tanto da capital gaúcha quanto da sede administrativa do país. Parece que, na época de Simões Lopes, não era ainda constrangedor autodenominar-se escritor regional, tanto é que os seus contos, de 1912, levam até hoje o subtítulo “folclore regional”. Quem conhece a história da literatura brasileira sabe que, desde antes de José de Alencar, gestou-se no país um movimento voltado ao registro literário das particularidades culturais e que a obra de Simões Lopes, no final das contas, constitui uma das manifestações mais bem-sucedidas do nosso regionalismo. Essa descoberta, porém, tardia em relação ao sucesso do Romance de 30, foi premiada com uma edição luxuosa da Editora Globo, em 1949, da qual participaram ninguém menos que Carlos Reverbel, Augusto Meyer e Aurélio Buarque de Hollanda.
João Cláudio Arendt*
* Escritor, professor do Programa de Pós-graduação em Letras, Cultura e Regionalidade da Universidade de Caxias do Sul (UCS), autor de “Histórias de um Bruxo Velho” (Educs, 2004)
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