Pena, pavor e purgação conduzem o livro de estreia de Gabriela Porto Alegre


Aquilo que está morto em nós e no que nos rodeia mobiliza os poemas de Nada que se assemelhe a qualquer animal vivo, em pré-venda pela editora Urutau. Influenciada por Aristóteles em Arte Poética, a autora subdivide o material nas três fases do teatro trágico: pena ou compaixão; medo ou horror e, por fim, a catarse ou sublimação.

Segundo a autora, Gabriela Porto Alegre, a obra situa-se “no pulso entre os caminhos do corpo e das controvérsias sociais que os poemas evocam, perscrutam e denunciam por meio de uma linguagem detalhista e áspera”. Seus poemas descrevem vias sacras: aquela percorrida pelo corpo da pena de si, a vergonha, até a purgação de si, a emancipação; e aquela trilhada pelo espaço em que o corpo existe, desde a pena ante a desgraça social, paralisadora, até a purgação do obscurantismo.

A cadência comum em que o corpo atravessa o espaço e o espaço atravessa o corpo é visada pela temática de cada poema, como o silenciamento, o sonho, a revolta, a sexualidade, até mesmo a fila da vacina, mas também é comunicada pela estrutura — como os versos em enjambement, que estendem o seu sentido até o final das estrofes — e pela sonoridade — como as aliterações de consoantes plosivas e fricativas:

o pequeno pânico imposto pela paisagem divina
[…]
as groselhas rasteiras
que pressiono contra meus lábios
e sinto escorrerem pintando o comprimento da minha alma


Nada que se assemelhe a qualquer animal vivo explora as transformações íntimas de uma mulher que decide, palavra a palavra, venerar as inutilidades, resgatar a si mesma em meio ao aluvião, à rapidez maçante do quotidiano. É com essa vênia que os poemas conclamam o leitor a diluviar-se, a amar barbaramente, a reconhecer a corrosão das palavras, mas também o convida à desaceleração, à candura, à contemplação das indescritibilidades.

Gabriela Porto Alegre

Gabriela Porto Alegre
Gabriela Porto Alegre – Foto: Jade Luzardo

Gabriela Porto Alegre começou a escrever seu livro em 2020, quando teve que voltar para sua cidade natal, Rio Grande, e reencontrou a praia do Cassino, o mar em que cresceu. No isolamento, se familiarizou mais profundamente com a literatura e passou a realizar lives e saraus poéticos individuais e coletivos em seu instagram @portoalegregabi. Participou de antologias poéticas e passou a integrar a equipe de poetas do Portal Fazia Poesia.

Em 2021, começou a trabalhar como tradutora literária do francês e publicou Veneza Salva: poesia e dramaturgia em Simone Weil (ed. Bestiário). Seu mais recente trabalho é a cotradução com a Prof. Dra. Kelley Duarte (FURG) do romance belga Mas meu vestido não ficou amassado (ed. Bestiário) de Corinne Hoex, apoiada pelo edital de tradutores da casa de literatura belga Passa Porta.

Atualmente, cursa Bacharel em Letras com ênfase em tradução do francês na UFRGS. Foi em meio a mudanças de rotina e pequenas revoluções cotidianas, como o hábito de escrever diariamente, nadar e fazer longas caminhadas na praia, que a autora de 24 anos passou a visualizar seus poemas como um itinerário do si. Em 2022, compilou os poemas e os submeteu a revisões linguísticas e literárias.

Para os que adquirem o livro autografado, a autora enviará um brinde: um poema concreto interativo, que demonstra por outro ângulo, a espinha dorsal que reúne os poemas de Nada que se assemelhe a qualquer animal vivo, obra que revela as coreografias entre a morte e as vísceras.


Nada que se assemelhe a qualquer animal vivo
Gabriela Porto Alegre
Ed. Urutau, 2023
86 p.
52 R$ (frete incluso)
Adquira aqui: benfeitoria.com/projeto/nada

+ Sobre Nada que se assemelhe a qualquer animal vivo

por Juliana Blasina, poeta

O que permanece na certeza de que tudo convalesce?

Em seu livro de estreia, Gabriela Porto Alegre nos diz que é preciso fazer com as palavras um pacto de sujidade. Regida por esse pacto, a poeta reorganiza órgãos e verbos, células e sujeitos, sílabas e organelas nas mais inusitadas composições até acessar as memórias escritas no avesso das carnes ou na escuridão dos ossários do passado — memórias herdadas das mães, das avós, das mulheres que as antecederam:

escutemos
a primeva sinfonia das vísceras


Nada que se assemelhe a qualquer animal vivo nos mostra como sair do corpo para ocupar um corpo. Ainda que somando cortes e dando a eles um torniquete com o perfex, de modo que o fechar dos talhos acorde um novo sentir a léguas e léguas de distância do velho sentido. É na potência de versos lapidados para retomar o latifúndio arrendado do espaço-corpo que a poeta abraça a derrocada de estar viva, enquanto nos diz, entre sussurros e gritos, que:

o corpo
não pode ser meu
porque, como tudo, está à venda


A poesia de Gabriela Porto Alegre não chega para nos lembrar, para nos convencer, para nos conduzir: ela chega, ela existe, ocupada do propósito nada simples de existir e compreender seus fins. Em versos vigorosos, ela rompe com a necessidade de aprovação, com a sujeição, com a serventia — quando afirma que poucos gestos são tão importantes quanto venerar a inutilidade — e com outras tantas falácias que têm apequenado mulheres.

Nada que se assemelhe a qualquer animal vivo ausculta sinais e segredos vitais da semente à carcaça. Algo que sentimos e quase, quase sabemos, mas que, sem a poesia para nos tirar do torpor e nos lançar entre o incêndio e o maremoto, permaneceria intacto em algum lugar em meio às entranhas do ser. Com unhas recém-lixadas, Gabriela descortina aquilo que sangra debaixo da pele.

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