Resenha: Dirty Lion – NaturezAÇÃO


por Roberto Soares Neves

É de se esperar de um disco de rap a temática social, a denúncia das injustiças, a desconfiança – pra dizer o mínimo – com as autoridades. Especialmente no rap pelotense, que felizmente ainda não sofre (muito) com a tendência à idiotização que mais cedo ou mais tarde atinge todos os ramos da música pop. Mais raro, no entanto, é encontrar, em qualquer estilo musical, um discurso positivo e propositivo, que vá além da descrição de mazelas e abra os horizontes até na teoria. É o que traz “NaturezAÇÃO” o primeiro disco do Dirty Lion, projeto solo do rapper Garcez.

Desde o título, “NaturezAÇÃO” é um chamado à união e ao movimento para a mudança. Ao mesmo tempo em que se mostra altamamente conectado ao mundo e à atualidade, Garcez critica o progresso como nos é vendido, a “cultura da disputa e do consumo”, a alienação. Não sem reconhecer as próprias limitações como voz semi-solitária nessa batalha, ele tenta conduzir o ouvinte aos caminhos sonoros e líricos que ele mesmo trilhou.

O som tem ecos de soul, MPB, jazz, mas com vocação confessa para o reggae – o “Lion” não é por acaso. Mesmo quando não se apoiam em samples de baixos e guitarras regueiros característicos, as músicas seguem um clima relaxante equivalente. A produção de 14 das 17 faixas é de Matheus Menega, cabendo duas (“Viajante” e “4 e 20”) a Pok Sombra e uma (“Evolução”) a Perello. Garcez não só rima como canta, na maior parte das vezes com resultados satisfatórios.

Passada a intro de sons da natureza, a introdução de “Em Vão”, em voz e violão, é o primeiro momento em que o vocal escorrega. Mas o susto fica pra trás assim que entram o rap e baixo, bateria e guitarra. Lá pelo meio, o reggae toma conta e a música empolga pela primeira vez, até ser reconduzida à calmaria pelo rap classudo: “Seguem calados como cachorros amuados que não latem, não vêem além, não usam a voz que têm / E se for preciso atacam os outros, só pra poder livrar o próprio pescoço”.

A próxima faixa, “A Arte”, mostra o diferencial de Dirty Lion: é um trecho declamado de “A Necessidade da Arte”, de Ernst Fischer, popularizado na terceira parte da trilogia filmográfica “Zeitgeist”. Ela dá passagem à funkeada “Mais que Lalala”, que tem participações de Zudizilla e Pok Sombra. Quem rouba a cena, no entanto, é a doçura de Lara Rossato, com um refrão que infelizmente aparece só no final, quando podia ter intercalado as intervenções dos kzeros.

“Ordem Pós-moderna” traz na entrada e na saída trechos do discurso do artista Eduardo Marinho, viralizado no Youtube. “O trânsito é lento e a internet vai a milhão”, dispara Garcez no reggae nervoso. No refrão, “precisamos viver de modos mais naturais”. Em cabeças mais conservadoras pode parecer um paradoxo. Não é: a tecnologia sozinha não é um mal e Garcez usa os meios a que tem acesso para seus próprios objetivos. Apropria-se do sistema pra combatê-lo.

Logo após, a faixa-título a princípio é um rap mais tradicional. Contrapõe os grandes eventos, como a ECO-92 e sua sucessora Rio+20, com suas pretensas boas intenções, e os meandros da economia que sempre se impõem no final. No refrão, um violão chama a música para a brasilidade. “Evolução” também segue o esquema “beat viajante com aparições esparsas de violão” e encontra um equilíbrio entre o meio e a mensagem. É um apelo quase desesperado ao autoconhecimento, e o refrão é do tipo que leva semanas pra sair da cabeça.

“4 e 20” engana: pelo nome, se espera mais uma defesa genérica da cannabis, mas o que vem é uma história de amor sui generis. O que chama atenção do hesitante galã é que a musa de dreads lê Stuart Hall. É, não é todo dia. O refrão é outro momento em que o vocal poderia ter sido melhor trabalhado.

Um dos melhores momentos é “Atividade Rasta”, ragga puro com a participação de um conhecedor do assunto, Jimmy Luv. A música é localizada, mas a mensagem é pra todos: “Não precisa ter dread nem fazer fumaça / É só plantar o bem pra salvar a raça”. “Fator Mudança” entra distorcendo “Estação da Luz”, do já psicodélico Som Nosso de Cada Dia. Toca em tópico espinhoso ao pedir menos policiamento e mais educação, e encerra o disco num coro que funciona como resumo e última tentativa de acordar o ouvinte: “O fator mudança tá em mim, mas tá em ti”. Fica a dica.