Resenha: Mate a Palavra!


por José Antonio Magalhães

O Prêmio Satolep Universitário, fruto de um projeto de extensão ligado à disciplina de Produção Cultural do curso de Artes Visuais da UFPel, selecionou e premiou obras de um pessoal que, vindo de diferentes partes do Brasil, tem em comum a condição de estudante de artes em Pelotas. A comissão julgadora, formada pelos professores do Centro de Artes, deu o primeiro lugar a “Matem a Palavra!”, da estudante Jéssica Coqueiro, 21 anos, natural de Campinas/SP e matriculada no segundo semestre de Artes da UFPel.

A obra consiste em uma série de páginas de um livro – a princípio, não identificado – cobertas por desenhos em nanquim e cujas palavras, na sua maioria, foram suprimidas por um marcador preto. Apenas algumas são deixadas à vista, formando um texto novo. Outras transparecem nos espaços deixados pelos desenhos – cuja característica doentia é a marca da artista.

Difícil definir “Mate a Palavra!”. Já ouvi se chamar de “gravura”, o que me parece estranho, tanto pelo papel central do texto quanto pela não-reprodutibilidade do desenho, que é feito muito manualmente. Ouvi também se chamar de “poema” mas, embora ali haja poema (e isso não seja obstado pela anterioridade do texto), não dá para não ver os desenhos, as texturas e rabiscos como parte da obra. No fim das contas, para analisá-las aqui, preferi chamar as partes que formam “Mate a Palavra!” de “páginas” – além da estranha “capa” que as precede.

Se nessas páginas há poema, trata-se de um poema do avesso, posto que a mão da artista não está nas palavras que formam versos – há aqui versos? – e sim nas linhas que borram as demais. É matando palavras (a grande maioria – um genocídio) que a artista poupa o poema.

Em uma olhada atenta, dá para desvendar o palimpsesto e acessar, pelo menos em alguns trechos, o texto por trás do preto. Trata-se da prosa enxuta de um romance policial intitulado “Mate o Palhaço”, parte de uma série do detetive Shell Scott, criação do americano Richard S. Prather. Mas é um policial cheio de imagens, o que deixa à disposição da artista um vocabulário fértil a partir do qual criar. Isso tudo ao acaso, posto que Coqueiro não escolheu o livro que serviu de base para a obra.

A obra possibilita ordens distintas de leitura, tanto que em suas várias encarnações – na internet, na Casa FDE Pelotas e, finalmente, no Prêmio Satolep – as partes foram dispostas diferentemente. Aqui, vou passar pelas páginas na ordem em que estão atualmente expostas.

A série tem uma “faixa-título”, que se resume à frase “MATEM a palavra”. O “matem” está em maiúsculas por formar o título da obra original, onde o “palhaço” é substituído pela “palavra”. Desde logo, a transfiguração feita através da supressão de palavras é abordada assim – como violência contra o texto. Não é por acaso que a obra é descrita como desenho sobre “livro violado”.

Na segunda página, outro recurso curioso – a palavra “vaivem”, originalmente um substantivo (o ir-e-vir daquilo que vai-e-vem), é recontextualizada como verbo:

“sem dúvida
vaivem
as formalidades”

Alguns temas são recorrentes, como uma ideia difusa de culpa (“eu menti alguns pormenores”, “provavelmente servi-me de alguma coisa”); a ideia de morte, sugerida no título, e uma espécie de poética do espaço, que é descrito através de palavras oblíquas (“no dizer da perspectiva”, “pelo chão de dimensões”).

Este poema, com suas duas rimas bonitamente dispostas e seu ritmo assimétrico, é o mais acessível para quem veio pensando em poesia. Encontrar essas rimas, em meio ao texto fragmentado, é mais redentor do que achá-las ao final das linhas paralelas de um poema comum, onde não seriam mais do que o esperado.

A primeira parte do poema tem um ritmo certinho, que começa a se quebrar a partir da metade, e cai sobre a frase final, mais longa que o esperado, mas que curiosamente dá a cadência que era necessária. Essa estranha frase – “porções generosas de sua anatomia” – vem inteira do livro, e gera curiosidade – qual será o seu contexto?

Mais do que isso, a frase remete à morte já prevista desde o início – mas é uma morte estranha. Um segundo ser é destruído, mas essa destruição é expressa em termos que a despem de toda a violência. A anatomia (um termo bem menos humano do que “corpo”) desse ser é simplesmente deixada no chão, distribuída sobre as suas dimensões. A ideia do corpo como objeto inerte e fragmentado é reiterada pelo desenho de cabeças rolam apaticamente umas sobre as outras.

Na próxima página, o tema é a culpa. A paranoia vem na forma de olhos descendo sobre o sujeito, que se confessa autor de um pecado menor. Os olhos da figura em nanquim, ao contrário, sobem, mas o sorriso não a coloca na posição do culpado. Não há aqui – nem nas outras páginas – associações fáceis entre desenho e texto.

Pode ser, contudo, que seja o ar lúgubre dos desenhos que influencia a uma leitura tão pessimista. Se tomado em separado, o texto às vezes não parece tão trágico, e tem os seus momentos até de inocência e redenção. Essa redenção é encontrada na divagação do pensamento, como em:

“tomar banho de
porta aberta
ideias loucas
pela cabeça”

A mesma redenção no pensamento – e ligada a um momento doméstico/descontraído – retorna na página final, mas dessa vez relacionada à ideia de auto-supressão. O sujeito decide eliminar-se, e o faz de bom grado, satisfeito em ceder seu ser ao pensamento. É um suicídio confortável, e um suicídio parcial (duas vezes?) – que não impede que as ideias ainda tenham “corpo” ou que o corpo ainda tenha “mente”.

Com “Mate a Palavra!”, Jéssica Coqueiro desenvolveu uma poética própria, com sua dinâmica e seus temas particulares. Os elementos gráficos e textuais oferecem possibilidades infinitas de interação a serem exploradas, e ainda existem muitos livros no mundo a serem transformados segundo essa ideia (que chega a lembrar Jorge Luís Borges) de que em cada livro existam infinitos livros possíveis. As portas estão abertas para um mundo poético. Vejamos o que pode sair dele.