Crônica: Ruas de Corcel azul


Tem essas ruas em que as casas e as árvores têm um ar tranquilo. São como aqueles parentes que, quando a gente é pequeno, acha que estão ali desde sempre. Elas têm uma constância, são a mesma do começo ao fim; são largas, tias gordas que adoram abraçar.

Nessas ruas, os fios de luz têm mais passarinhos. E no inverno úmido, uma calçada ou outra tem pequenas ilhas de limo. São ruas por onde passam carros modernos, mas sorriem de canto de boca, quando dobra um Corcel azul. Quando chove, os paralelepípedos, insistentes, pedem fotografia em preto e branco.

Caminho por elas devagar. Com respeito mesmo. Porque até os cães que circulam ali, são diferentes. Como o velho, que já anda meio rebaixado e lento. Em cima dos olhos tem uma sombra branca e quando late, o que acontece raramente, parece o Tom Waits. Os gatos são os donos dessas ruas. Desfilam arrogantes e não ligam pro cachorro, que nem vira o pescoço pra ladrar um “auf” preguiçoso e rabugento.

Casas de cimento penteado me lembram da infância. Eu ficava raspando a unha, tentando arrancar os “vidrinhos” brilhantes de uma dessas que tinha perto de casa.

Apesar de viver em regime semiaberto (quatro horas diárias de ciências, religião, português, matemática e cantar o hino), livre disso não havia mais nenhum compromisso. E arrancar os vidrinhos me parecia uma boa maneira de esperar o amigo terminar de tomar o Nescau e sair pra jogar bola.

As casas com degraus, que na minha imaginação infantil eram significado de que gente importante morava ali, hoje têm grades e chaves buldogue. Também não há mais crianças brincando na rua, pra sentar nos degraus…

Não me espanta que os tempos estejam confusos. É como se alguém houvesse fabricado verdades em excesso durante muito tempo, para que agora, todos possam carregar seu punhado delas no bolso.

Alguma coisa se perdeu no caminho. As tias gordas que gostavam de abraçar foram desaparecendo, como o Corcel azul. O tempo cobra a sua parte pelo tempo que dá e talvez o cachorro velho e rabugento, já tenha brincado naquelas mesmas calçadas.

Talvez o hoje deva ser agora… e o importante, mesmo, não seja exatamente aquilo que se acumulou, mas justamente o contrário: tirar dos bolsos os pregos tortos de tanto tentar consertar a vida e as chaves que não abriram nenhuma porta.

Talvez assim seja possível andar por aí, quase como se não fosse são, olhando essas ruas em que as casas e as árvores têm um ar tranquilo. Como aqueles parentes que, quando a gente é pequeno, acha que estão ali desde sempre.

Não sei. Talvez…

 

MARCELO NASCENTE