Tabataba escancara a fragilidade humana


Por: Joice LimaUm irmão. Uma irmã. Uma casa abandonada. Dois irmãos abandonados. Uma relação de dependência mútua. Uma casa em ruínas. Dois corações em ruínas. Dois corações que anseiam por liberdade. Duas almas aprisionadas. Uma à outra… Ou a si mesmas… Às suas próprias neuroses e fragilidades. À incapacidade de ir adiante. À necessidade de culpar o outro pela própria impotência. O pequeno espelho mostra oitenta pessoas atentas na plateia, mas a peça mostra muito mais. Mostra o quanto somos selvagens e, ainda assim, humanos. Humanos demais. Tão humanos que dói.Irmão e irmã que gritam sua angústia, a frustração e o desespero pela incapacidade de sair “dali”. Estão supostamente em uma ilha, mas poderiam estar em um arranha-céu, no meio de uma cidade grande. A solidão seria a mesma. A moça, Maiamuna, sonha em se casar, mas para fazer isso “precisa” encontrar uma concha fechada, “perfeita”, que ela busca diariamente. O rapaz, Putoabu, sonha em conhecer o mundo, mas precisa terminar sua moto, imaginária, que ele monta, aos poucos, com pedaços de sucata. “Eu preciso ir, mas só vou se você for primeiro. Vai você! Vai você! Se não for, não posso ir”. Um “precisar” autoimposto para disfarçar o medo, não, o terror de enfrentar o desconhecido. Mais fácil empurrar para o outro o peso das minhas decisões não tomadas. Mais fácil ficar e reclamar. Humano demais. Dói.

Um escancara a fraqueza do outro com sinceridade cruel – o dedo, impiedoso, enfiado na ferida aberta. Expõe a ferida do outro, mas segue imerso na própria fantasia. O ataque como defesa. Autoproteção. Apesar da agressividade mútua, o sentimento entre os dois derruba qualquer barreira de ódio. União fraternal… Sexual… Irmandade. Amor. Ou necessidade? Dependência? Precisam um do outro para manter seu teatro particular, sua vida protegida dos perigos do mundo real. Precisam um do outro… Será mesmo?Tabataba, encenada a partir da peça do francês Bernard-Marie Koltès,  foi apresentada no final de tarde do último domingo (17), em uma casa em ruínas às margens da BR-392, KM 56. Dirigida por Rodrigo Rocha, a proposta é descentralizar o teatro, levar o público a outros lugares que possam contribuir na sua sensibilização, pesquisa que está desenvolvendo em seu TCC no curso de Teatro Licenciatura da UFPel. Funcionou. É verdade que a entrega visceral dos atores Martha Grill e Juliano Bohn Gass provavelmente teria emocionado mesmo em um espaço convencional, mas com certeza o “resultado” foi intensificado por diversos fatores… Ajudou o ritual percorrido pela plateia, que se deslocou até o Capão Seco, caminhou pelo campo até chegar à casa abandonada e se sentou em cadeiras portáteis ou no chão. Ajudou o por-do-sol, que serviu de iluminação natural – acabou no momento exato em que terminou a peça.Ajudou o ruído dos veículos que transitavam pela BR, seus sopros, secos, rompiam o silêncio absoluto da plateia, estarrecida com a performance. Ajudaram os grupos de quero-queros que cruzavam, de vez em quando, pelo céu, como se quisessem também eles fazer parte daquele momento especial. Ajudou um animal que entrou na última cena, nos momentos finais da peça. Ele (parecia uma lontra! não sei se era) apareceu ao fundo e correu um pouco, na direção dos dois irmãos, que estavam sentados em cadeiras, de costas para o público, selando sua reaproximação, inevitável. Chave de ouro para encerrar um trabalho que tocou e fez refletir sobre a fragilidade humana. Uma daquelas (poucas) performances que não se esquece e que faz a gente pensar: – Que bom que eu estava lá.

*Joice Lima é jornalista (UFSM), teatróloga (UFPel), atriz, diretora e dramaturga, integrante da Cia Pelotense de Repertório Teatral.
Fonte: ccetp.blogspot.com.br